A química do sorvete
Embora possa ser encontrado em qualquer esquina, o sorvete é um verdadeiro fenômeno químico: diversas fases heterogêneas que, macroscopicamente, formam uma deliciosa massa homogênea e cremosa.
A mera existência do sorvete é uma ameaça aos conceitos fundamentais da química. Num bom sorvete, gotas de gordura, bolhas de ar e cristais de gelo são igualmente dispersos em uma expessa solução de açúcar para formar a matriz semi-sólida, congelada e aerada que conhecemos. O impossível acontece e é maravilhoso.
Fazer o sorvete "dar certo" é uma arte. Se você colocar os ingredientes acima em um liquidificador, bater e depois levar ao freezer irá obter uma meleca: enormes placas de gelo envoltas em um creme irregular e desuniforme. Para fazer o sorvete com um freezer, a mistura deve ser agitada manualmente e, mesmo durante o resfriamento, continuamente. Somente a agitação regular pode evitar a formação de grandes cristais de gelo. Agora, se você for um químico, a tarefa pode ser muito mais simples: basta misturar os ingredientes ainda quentes e jogar uma boa quantidade de nitrogênio líquido. Instantaneamente, o sorvete (de ótima aparência) fica pronto. Uma boa forma de impressionar seus amigos, não é?! O nitrogênio líquido esfria a mistura tão rapidamente que não há tempo para grandes cristais de gelo se formarem, criando um sorvete fino, cremoso e homogêneo. Parte do nitrogênio, na forma de gás, é aprisionado dentro da mistura, fazendo o sorvete ficar particularmente aerado. Perfeito, em apenas 30 segundos.
Água e óleo não se misturam, certo?! Errado - o próprio leite já é uma emulsão de gordura em água. No leite, a gordura é aprisionada em membranas protéicas, sob a forma de glóbulos. Estes glóbulos são bastante estáveis no leite, mas esta não é uma qualidade desejada para o sorvete: para formar um bom sorvete, estes glóbulos devem colapsar, ou seja, devem ser menos estáveis. Para isto, os fabricantes adicionam emulsificantes (surfactantes), como mono ou di-glicerídeos, que diminuem a tensão superficial dos glóbulos, permitindo a formação da emulsão coloidal. Um sistema coloidal é definido como um sistema que tem um ou mais componentes com um tamanho variando de um nanômetro a um micrômetro em pelo menos uma dimensão. Se agitarmos uma mistura de água, óleo e surfactante teremos uma emulsão coloidal. Entretanto, para fazer com que o sorvete não colapse as concentrações de mono- e diglicerídeos precisam ser meticulosamente selecionadas. Se forem muito altas, os glóbulos de gordura colapsam em grandes blocos gordurosos, fazendo o sorvete parecer uma manteiga. O sorvete deve permanecer por horas a 4 o C, num processo chamado envelhecimento, onde os glóbulos são estabilizados e a viscosidade da emulsão aumenta, devido à hidratação dos emulsificantes.
O próximo passo envolve a desestabilização em um SSHE (scraped-surface heat exchanger), que simultaneamente congela e promove a aeração da mistura. Isto muda drasticamente as propriedades do sorvete: cristais de gelo começam a crescer e bolhas de ar são inseridas na emulsão. Os fabricantes evitam o supercrescimento dos cristais de gelo através de grandes pás rotatórias, que quebram os cristais em pedaços menores do que 50 micrômetros. A aeração é muito eficaz: um sorvete regular contém mais de 50% de ar! Sem isto, a textura de um sorvete não seria tão diferente de um cubo de gelo, e daria uma péssima impressão ao paladar.
O ar no sorvete é um tema constante de pesquisas químicas. Mais que um desafio para os cientistas, é uma arte para os fabricantes. As bolhas devem ser pequenas e uniformes, finamente dispersas. Se colapsarem, saem da mistura e o sorvete não retém mais sua forma. De uma maneira geral, as bolhas de ar não podem ter mais do que 100 micrômetros de diâmetro. Se forem maiores, o sorvete derrete muito rapidamente.
Aí entram as proteínas: são elas que estabilizam as bolhas de ar e os glóbulos de gordura! A principal é justamente a caseína, uma proteína micelar, abundante no leite. São as micelas de caseína que ficam em volta dos glóbulos de gordura, tornando-os estáveis dentro da emulsão. E os sacarídeos e polissacarídeos presentes também têm um papel importante: solúveis na água, impedem esta de congelar completamente, pois diminuem o ponto de fusão do líquido. O resultado é uma viscosa solução, que faz com que o sorvete seja macio - e não duro como um iceberg! Esta solução saturada de sacarose é chamada de plasma ou serum. Num bom sorvete, o serum está sempre no estado líquido.
Somente após a saída do SSHE é que o sorvete recebe os ingredientes finais: sucos ou aromas artificias de frutas, com o sabor requerido, além de corantes e outros aditivos. No caso de pedaços de frutas ou castanhas, o cuidado é especial: estes elementos são tratados quimicamente antes de serem adicionados, pois podem carregar bactérias e outros contaminantes, capazes de destruir a emulsão. O sorvete, então, é armazenado em temperaturas inferiores a -30 o C; acima de 25 o C os cristais de gelo continuam a crescer e as bolhas de ar se expandem.
Adaptado de: http://www.qmc.ufsc.br/quimica/pages/especiais/revista_especiais_sorvete...
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Comments
Caramba!
Pra ser gostoso é preciso de muito trabalho vide o sorvete,né.
Não sabia que o sorvete precisava disso tudo,não...vou começar a dar mais valor... x)
Comendo mais,óbvio. x)