História e cultura africana e indígena nas escolas

mapa-da-africa.gifDesde 2003 legislação obriga o ensino dos temas, mas educadores e gestores ainda têm dificuldades para fazer valer as leis no cotidiano escolar.

No dia 13 de maio, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) lança um selo que será entregue aos municípios e estados que cumprirem a legislação e inserirem nos currículos escolares da educação básica o ensino da cultura e história afro-brasileiras, africanas e indígenas.  A data é simbólica, já que em 13 de maio de 1888 foi assinada a Lei Áurea, que proibiu, ao menos na teoria, a escravidão no Brasil. O 13 de maio é também o Dia Nacional de Combate ao Racismo.

Atualmente, há leis que asseguram a obrigatoriedade do ensino da cultura e história afro-brasileiras, africanas e indígenas nas escolas. A lei 10.639 foi sancionada em 2003 e institui o ensino da cultura e história afro-brasileiras e africanas e a lei 11.645 complementa a lei 10.639 ao acrescentar o ensino da cultura e história indígenas. Ambas alteram a lei 9.394 , que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Para nortear o cumprimento da legislação, o Conselho Nacional de Educação aprovou em 2004 e o Ministério da Educação (MEC) homologou as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN's) para educação das relações étnico-raciais . Pelas diretrizes, o ensino deve ter três princípios: consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações educativas de combate ao racismo e às discriminações. Os princípios se desdobram em diversas ações e posturas a serem tomadas pelos estabelecimentos de ensino.

A legislação não especifica se os temas relativos à história e cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas devem formar uma disciplina à parte. "Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras", diz o parágrafo 2º da lei 11.645.

Com relação aos temas afro-brasileiros e africanos as DCN's especificam que: "O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações étnico-raciais se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas, particularmente, Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais, em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares".

As diretrizes sugerem ainda, por exemplo, que no ensino da história afro-brasileira esteja compreendida a história dos quilombos; na história da África, as civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; e da cultura africana, as universidades africanas Timbuktu, Gao, Djene do século XVI, entre várias outras indicações.

O professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Valter Silvério, acredita que o principal benefício da inclusão dos temas no currículo é o encontro das crianças com a sua própria história."Índios e negros sempre aparecem na história oficial como seres ahistóricos. É importante para as crianças relacionarem e identificarem os diferentes corpos da história brasileira. A própria relação dos estudantes com a escola pode mudar e os professores vão ser obrigados a se capacitarem nessa área temática, já que não estão preparados, não por culpa deles, mas porque estão repassando o que aprenderam", opina.

Para Valter a história da Europa pode ser desmistificada com a inclusão da história afro-brasileira, africana e indígena nos currículos.  "Não para criar um tipo de revanchismo, mas a história deve ser recontada com a presença de outros atores que a compuseram. O Brasil tem todos estes atores, então, é preciso que o estudo seja melhor distribuído. A Europa já é bem estudada", afirma. O professor lembra que até a aprovação destas leis não havia nada que garantisse que os temas fossem tratados na escola.

Como inserir no currículo?

O coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis, Antônio Flávio Moreira, considera que a inclusão dos temas no currículo é muito positiva, sobretudo quando se pensa no público que frequenta as escolas públicas, formado por muitas crianças negras."Trazer para as crianças uma discussão sobre a história e cultura afro-brasileiras é fundamental para que elas percebam que não é só o vencedor que faz a história, que todo o povo tem sua história e que é preciso conhecê-la para entender o presente e pensar o futuro", afirma.

Antônio Flávio observa, entretanto, que é preciso pensar com cuidado a respeito de como novos conteúdos devem ser incluídos no currículo escolar, não apenas em relação aos referentes à cultura e história afro-brasileiras, africanas e indígenas, mas também outros que em vários momentos se pensa em incluir, como sexualidade, trânsito e direitos humanos, por exemplo."Eu penso que não vai dar nunca para se incluir no currículo tudo que gostaríamos, há que se fazer uma seleção, é inevitável. Me preocupa um pouco a sobrecarga de temas pelos quais o currículo é visto como responsável em termos de discussão e isso precisa ser pensado com mais cuidado", ressalta.

O professor dá um exemplo de como o tema pode ser incluído. "Quando se trabalha literatura, por exemplo, e se mostra ao aluno o valor de um texto literário, o estilo daquele escritor, buscando sensibilizar o aluno para outras obras literárias e para a literatura em geral, isso pode ser feito tanto pela literatura brasileira, quanto pela literatura portuguesa ou pela literatura africana. Então, talvez o aluno deixe de conhecer alguns escritores brasileiros, mas ele por outro lado vai enriquecer os seus conhecimentos com a familiaridade com autores africanos contemporâneos", sugere.

Na Escola Municipal Professor Souza da Silveira, no Rio de Janeiro, a coordenadora pedagógica do Ensino Médio noturno, Carla Lopes, tenta, desde 2004, fazer a lei ser aplicada na prática. Carla, que também é professora de história, conta que a melhor forma que encontrou para cumprir a legislação foi inserindo no projeto político pedagógico o Programa de Reflexões e Debates para a Consciência Negra, idealizado por ela e pelo educador George Araújo. A proposta contempla ações durante todo o ano letivo, com palestras, atividades culturais e inserção no programa das disciplinas dos temas previstos na legislação. "Em 2004 fizemos uma semana da consciência negra na escola e tive bastante reação, professores batendo porta, alunos dizendo que eu estava implementando o racismo na escola, e foi a partir daí que fizemos o diagnóstico que não dava para trabalhar com a cultura africana e afro-brasileira somente na semana da consciência negra, percebemos que tinha que ser um ato cotidiano", relata Carla.

Ela explica que os professores foram incentivados a buscar no programa de suas disciplinas possibilidades de abordagem da história e cultura afro-brasileiras. Ela fala que, sobretudo no início da implementação do programa, não foram todos os professores que aderiram à proposta. "De seis professores de matemática, apenas dois aderiram", diz. Entretanto, os estudantes das turmas que não eram atendidas por estes professores começaram a reclamar. Hoje, ela considera que alunos e professores já reconhecem o valor e a necessidade de se continuar com a proposta.

Carla ressalta que alguns resultados deste trabalho são visíveis. Estudantes e professores da escola se envolveram também em outros projetos, como a criação de um jornal comunitário, a implementação da agenda 21 local, com o tema Racismo Ambiental, e o desenvolvimento de um vídeo e livro sobre patrimônio imaterial, com a proposta de levantar a memória do samba. Além disso, conta que três estudantes foram premiados em concursos de redação que tinham como temas direitos humanos, diversidade, história e cultura afro-brasileira.

Ela acredita que em algumas escolas há uma interpretação equivocada da lei ao criar disciplinas para tratar dos temas. "Eu acho que as diretrizes justamente querem mostrar que é para estes temas estarem em todas as disciplinas. È como educação ambiental: não dá para você aprisionar educação ambiental em apenas uma disciplina, porque perpassa todas as outras. A grandiosidade do momento que vivemos hoje é essa liberdade de poder trabalhar com a história africana e a cultura afro-brasileira de uma maneira que perpassa as disciplinas", comenta.

A professora exemplifica como os temas são tratados nas disciplinas oferecidas aos alunos do Ensino Médio noturno da Escola Municipal Souza da Silveira. Nas aulas de língua estrangeira, Carla relata que desde 2005 os professores trabalham fazendo o diálogo entre a língua estrangeira e a temática da diversidade. Em 2009, os estudantes foram incentivados a investigar como a cultura negra norte-americana influenciou a brasileira. Dessa maneira, os alunos estudaram o Hip-hop, o Charme e como esses ritmos dialogam com a música e dança brasileira. Ela diz que nesse processo se descobriu, por exemplo, que alguns alunos eram DJ's e se apresentaram durante as aulas.

O que diz o MEC

Com relação ao ensino da história e cultura indígena, a Coordenação Geral da Educação Escolar Indígena, ligada à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Mec, explica que a escolha sobre a forma de abordagem dos temas depende da realidade de cada escola. "Depende do projeto pedagógico da escola. Se for um projeto multidisciplinar, a abordagem não será em disciplinas, mas por temas de estudo. Nos estudos da língua, por exemplo, pode-se discutir a literatura oral dos povos indígenas e mais recentemente a literatura também escrita. Nos estudos da sociedade, discutir as formas de organização social dos povos indígenas que diferem entre si e entre nossa sociedade. Nos estudos de matemática, apresentar os diferentes sistemas de contagem dos povos indígenas e em que esses sistemas são empregados. Se o projeto for disciplinar, será melhor trabalhar por temática específica para aprofundar o conhecimento", orienta a coordenação, por meio da assessoria de imprensa.

A coordenadora geral de Educação da Diversidade da Secad, Leonor Franco, reafirma que a história e cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas são componentes curriculares a serem incluídos em todas as disciplinas, especialmente naquelas destacadas pela legislação - educação artística, literatura e história.

Cumprimento da lei

Valter Silvério avalia que apesar de haver uma vontade política do governo federal para cumprimento da lei, poucos municípios e estados demonstram esforço para implementar o ensino da cultura e história afro-brasileiras, africanas e indígenas na escola. "Há algumas explicações para isso que têm relação com o lugar que os negros e indígenas ocupam no imaginário social. Formamos uma ideia que considero ingênua de que vivemos em uma democracia racial. E também há outra explicação que gosto mais, que tem relação com o racismo de nossas elites. Quando existe uma lei que diz que estes temas devem ser abordados na história e os gestores se recusam a implementar o nome dado para isso é racismo", diz.

A coordenação geral da educação escolar indígena, vinculada à Secad/MEC, avalia que no caso do ensino da cultura e história indígenas há situações diversas pelo país, em relação ao cumprimento da legislação. "Em alguns estados, a nova legislação sobre educação escolar indígena contribuiu para muitos avanços, como na criação de programas específicos de formação de professores em magistério nas licenciaturas interculturais, na produção de materiais didáticos específicos, em maior autonomia pedagógica para as escolas indígenas. Em outros, os avanços são poucos e há demora em sua institucionalização", respondeu a coordenação, por meio da assessoria de imprensa da Secad.

A coordenação afirmou ainda que acredita que com o novo modelo de gestão da educação indígena no país, implementado recentemente, com o decreto 6861/2009, haverá mais equidade na efetivação da lei. O decreto institui territórios etnoeducacionais, o que significa que será respeitado o limite das terras indígenas para se pensar a educação, independentemente da divisão político-administrativa do país.

Sobre o ensino da cultura e história afro-brasileiras e africanas, a Secad respondeu que há uma pesquisa em andamento, coordenada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre o cumprimento da Lei 10.639, que em breve será divulgada e fornecerá elementos mais precisos sobre o cumprimento da legislação.

Alguns passos necessários

A professora Carla aponta que a falta de material didático apropriado se torna também uma dificuldade para se trabalhar os temas. "A lei é criada, altera a LDB, mas o próprio MEC aprova livros didáticos que não contemplam esta temática. Isso desestimula", critica.

Antônio Flávio destaca que é preciso incluir estes temas na formação dos professores. "O conhecimento da literatura africana contemporânea tem tanta coisa bonita e precisa ser difundida, não só na escola, mas nos cursos que formam professores, porque se o professor que vai depois trabalhar na escola não tiver essa informação, como ele irá trabalhar bem? Em letras, história, geografia, etc, é preciso que essas discussões se façam presentes de uma forma instigante, apropriada, para que estimulem os professores", opina.

 

selesoubessem_thumbnail.jpgConheça o filme Se eles soubessem...sobre a experiência do Colégio Estadual Guadalajara, em Duque de Caxias/RJ com a incorporação da cultura negra no cotidiano escolar.
 

Comments

imagem de Dadié kacou Christian

Comentário sobre o tema abordado pela matéria

 

Sou africano, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Enquanto africano, adorei a idéia de incluir no currículo escolar brasileiro o ensino da história e das culturas africanas. O problema é como fazê-lo? O governo brasileiro, ao tomar essa lei, não ofereceu nenhuma medida de acompanhamento para auxiliar os profissionais da educação encarregados de tornar efetiva essa lei no quotidiano dos alunos. As condições de trabalho do professor já não são tão animadoras como antigamente. Pedir para esse profissional ensinar disciplinas que nunca fizeram parte de sua formação intelectual é algo problemático.  Acredito eu que ao invés de iniciar o ensino dessas disciplinas no Ensino Médio, seria bem melhor começar pelas Universidades privilegiando a formação do professor. Este, mais tarde, estaria mais bem preparado para encarar esse desafio.  No meu humilde ponto de vista, só com um planejamento de longo prazo, no que diz respeito à aplicação dessa lei no Ensino Médio, que se poderá atender aos desejos do povo brasileiro na sua diversidade étnica e racial.

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