Eu Sou/
Crônica de uma locução e Identidades.
Tarde destas, ainda ocupada pelos mundos de João Cabral de Melo Neto e Mia Couto em Morte e Vida Severina e Terra Sonambula, obras analisadas para uma apresentação nesta terça-feira, me atravessou, quem sabe, a fatalidade deste texto. Era um menino, talvez 13 anos, me olhava do outro lado da rua em sua bicicleta pequena.
Branco, cabelo curtíssimo, quase zero, olhos fixos... se aproximou, disse para eu ter calma e perguntou se poderia lhe dar água. Respondi que estava calma. Acabara de sair de casa, fechar o portão... sabia que não queria água. Posicionou sua bicicleta frente a minha e em rápida sequência, puxou a faca. Comecei a gritar o nome de vizinhos; ele disse que não estava com medo: " Eu sou bandido!" Apresentou-se com voz tranquila e olhar minucioso. Perplexa, retruquei: " bandido nada, vai estudar!". Logo apareceu alguém no alto do muro e ele, quase em câmera lenta, se foi. Esse registro ocupa meus pensamentos, ainda fevereiro.
Três dias antes desse episódio, e tudo parece acaso, escrevi um poema intitulado "Eu Sou Poeta/Identidade!"
A inspiração surgiu da necessidade de apresentar-se quando em dinâmicas de um grupo qualquer, esta última, um encontro com ativistas culturais. Sim, a minha identidade!
Por acaso, estava lendo Morte e Vida Severina e Terra Sonambula... guerra, vida e morte.
Por acaso, este menino a pronunciar-se: "Eu sou bandido!"
Existem várias identidades transitórias que nos circundam a vida, mas Eu Sou, possivelmente traz uma voz interior que toma o nosso ser por inteiro.
Que futuro se apresenta para este menino que não tem em casa (?) nem comida, nem família estruturada, nem vida digna.?. Que passa o dia todo na rua e não vai para a escola e, se vai, vai para que? Que escola temos para lhe oferecer? O que temos para oferecer nas escolas? Conheço a realidade da rede municipal e estadual de ensino e posso afirmar, infelizmente, que o aproveitamento é quase nulo.
Para onde irão estes estudantes no futuro? Qual futuro?
Procurei me colocar no lugar dele e imaginar o que sentiria se na pré-adolescência, tivesse eu, a mesma realidade daquele menino, o mesmo destino, a mesma sorte.?.
Talvez, só um esforço de todos nós, adultos, educadores, trabalhadores, mães, pais, artistas... só um olhar transformador, solidário, responsável socialmente, poderá oferecer um lugar justo a esta "geração de esquecidos", que cresce desabrigada do direito à educação, à cidadania... à vida!
O poema "Eco-Sistema/Eu Sou Bandido!" - que fiz para ele, travestido na imagem da dor que me causou a sua afirmação de identidade - , em diálogo com "Eu Sou Poeta/Identidade!", comentado no corpo desta escrita, busca interpretar as nossas vozes dissonantes.
Eu Sou poeta e Eu Sou bandido, são lugares à margem, de acento transgressor; porém, são falas distintas, possível dicotomia entre Ser e Estar. Que este menino e outros meninos e meninas, sejam respeitado(a)s nos seus direitos à igualdade de condição social e psicossociológica, para poder dignamente identificar-se em sociedade.
Ele não é um bandido, ele é um menino; somos responsáveis pela sua formação!
Walma Lúcia