O protagonismo juvenil no ensino médio*

        Etimologicamente, a palavra “protagonismo” deriva da expressão  grega prõtagõnistës  , e do termo francês protagoniste.  Em suas raízes gregas é composta por proto que significa “o principal, o primeiro”; agon, que significa “luta”, por sua vez, agonistes significa “lutador”, “competidor”. Nesse sentido, encontra-se ainda o termo semelhante agõnídzmai , que significa “concorrer ou lutar numa assembléia de jogos públicos, numa reunião, batalha, luta judiciária.” No teatro grego, protagonista era aquele que desempenhava o papel de “personagem principal”, “ator principal” num espetáculo trágico ou cômico. Já numa perspectiva sociológica, a expressão “protagonismo” vem sendo utilizada em referência ao “ator social” de uma “ação” voltada para mudanças sociais.  Mas na esfera do ensino, o que implica ser um jovem protagonista?

         Delors (1996) em relatório internacional sobre a educação para o século XXI  destaca que a escola básica passou a desempenhar um papel fundamental na preparação de cidadãos para uma participação ativa, uma vez que os princípios democráticos expandiram-se por todo o mundo. Assim, para ele, a  experimentação de práticas escolares pelos alunos, como jornais da escola, criação de parlamentos dos alunos,  elaboração de regulamentos da comunidade escolar, simulação do funcionamento de instituições democráticas, exercício de resoluções não-violentas de conflitos, tendem a reforçar a aprendizagem da democracia. No entanto, “sendo a educação para a cidadania e democracia, por excelência, uma educação que não se limita ao espaço e tempo da educação formal, é preciso implicar diretamente nela as famílias e outros membros da comunidade.” (DELORS, 1996, p. 60).

        Na defesa de uma educação cívica que contemple, simultaneamente, a adesão a valores, a aquisição de conhecimentos e a aprendizagem de práticas de participação na vida pública, Delors (1996) recomenda que a educação, desde a infância e ao longo de toda a vida, desenvolva no aluno a capacidade crítica que lhe permita ter um pensamento livre e uma ação autônoma. Trata-se, portanto, da exigência de um ensino que seja um processo de construção da capacidade de discernimento, capaz de propiciar ao aluno a conciliação entre o exercício dos direitos individuais, fundados na liberdade pública, e a prática dos deveres e da responsabilidade em relação aos outros e às comunidades a que pertencem.  (DELORS, et al, 1996, p.61).

       No contexto brasileiro, a reformulação do ensino médio instituída pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), de 1996, e posteriormente regulamentada pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, ao deixar de ter como foco a educação para o ensino superior ou profissionalizante, acentua, especificamente, a necessidade e responsabilidade de complementação da educação básica. Isto significa “preparar para a vida”, “qualificar para a cidadania”  e “capacitar para o aprendizado permanente”, seja em relação ao prosseguimento dos estudos, seja em relação ao mundo do trabalho.

       Mais do que reproduzir dados, denominar classificações ou identificar símbolos, está formando para a vida, num mundo como o atual, de tão rápidas transformações e de tão difícieis contradições, significa saber se informar, se comunicar, argumentar, compreender e agir, enfrentar problemas de qualquer natureza, participar socialmente, de forma prática e solidária, ser capaz de elaborar críticas ou propostas e, especialmente, adquirir uma atitude de permanente aprendizado. (PCNEM, 2002, p.09).

       Ora, tal formação  exige  um método de ensino no qual o aluno tenha condições efetivas de comunicação, argumentação, resolução de problemas,  participação social e cidadã, de modo a saber propor e fazer escolhas,  tomar gosto pelo conhecimento,  'aprender a aprender'. Mas não seriam esses alguns dos preceitos do “protagonismo juvenil”?

      Na resolução que institui as Diretrizes Curriculares e Nacionais para o Ensino Médio no Brasil-DCNEM  há um registro da palavra “protagonismo”, não explicitamente o juvenil, mas o protagonismo de professores e alunos. Tal resolução consiste num conjunto de princípios e procedimentos a serem observados na prática pedagógica e curricular das escolas, no sentido de consolidar a preparação para “o exercício da cidadania”  e  para o mundo do trabalho. O termo “protagonismo” pode ser encontrado neste documento em referência ao “princípio político da igualdade” como um dos princípios que devem nortear as práticas pedagógicas do ensino médio brasileiro; os outros princípios seriam os “estéticos”, “éticos”, o “da identidade”, “da diversidade” e “autonomia”, “interdisciplinaridade” e “contextualização”.   Especificamente sobre a observância de uma política da igualdade nos estabelecimentos de ensino, o documento aponta como ponto de partida:

       O reconhecimento dos  direitos humanos e dos deveres de cidadania, visando a constituição de identidades que busquem e pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o respeito ao bem comum, o protagonismo e a responsabilidade no âmbito público e privado, o combate a todas as formas discriminatórias e o respeito aos princípios do Estado de Direito na forma do sistema federativo e do regime democrático e republicano. (Resolução CEB/CNE, 1998, p.1-2)

        A propósito, o documento destaca a “Ética da identidade” como um princípio norteador na superação de dicotomias entre as esferas pública e privada, de modo a constituir identidades que sejam capazes de reconhecer, respeitar e acolher o outro, incorporando valores como solidariedade, responsabilidade e reciprocidade como norteadores de suas ações na vida profissional, social, civil e pessoal. (Resolução CEB/CNE, 1998, p.2). Uma segunda referência ao “protagonismo”  presente nestas diretrizes remete à necessidade da constituição de “competências” e “habilidades” no âmbito das ciências humanas e suas tecnologias.

        Para Ferretti, Zibas e Tarturce (2004, p.412) o conceito de “protagonismo dos jovens/alunos” tal como proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (1998), ao enfocar a necessidade do desenvolvimento de certas “competências” e “habilidades” entre os jovens, não está dissociado  de questões mais amplas como as próprias transformações sociais e culturais das sociedades contemporâneas, denominadas pós-modernas. Tais transformações configuram-se, sobretudo,  por profundas mudanças no campo do trabalho estruturado sob o capital, bem como por avanços significativos nos campos científico e tecnológico. Essas transformações, em maior ou menor grau, manifestam-se no cotidiano dos jovens através do desemprego, ou ainda, através da exigência de novas formas de socialibidade engendradas pela informática. Os autores interpretam o “protagonismo juvenil”, como uma via promissora de construção de subjetividades, pautadas em valores e atitudes cidadãs, em face de contextos sociais adversos , caracterizados por rápidas mudanças,  incertezas e instabilidades daí decorrentes.

       Esse conjunto de circunstâncias indicaria, segundo diversos autores, uma urgente necessidade social de promover, de maneira sistemática, a formação de valores e atitudes cidadãs que permitam a esses sujeitos conviver de forma autônoma com o mundo contemporâneo. Essa formação para a chamada “moderna cidadania”, além de atender uma exigência social, viria a responder às angústias de adolescentes e jovens diante da efemeridade, dos desafios e das exigências das sociedades pós-modernas e, também, perante as novas configurações do trabalho. O protagonismo é encarado, nesse sentido, como via promissora para dar conta tanto de uma urgência social quanto das angústias pessoais dos adolescentes e jovens. (FERRETTI, ZIBAS, TARTUCE, 2004, p. 413).

      Nessa direção, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM)  é um outro documento cujo conteúdo permite aproximações com o tema do protagonismo. Aqui, a referência é ao protagonismo do aluno, que é o público jovem, e do professor em sua atividade. O papel do aluno como protagonista, deve ser o de “constituir” ou “reconstruir” o conhecimento  por meio da atividade, e não o de ser um mero assimilador de conteúdos.  Assim, os Parâmetros propõem uma organização curricular na qual seja possível “estimular todos os procedimentos e atividades que permitam ao aluno reconstruir ou 'reinventar' o conhecimento didaticamente transposto para sala de aula, entre eles a experimentação, a execução de projetos, o protagonismo em situações sociais”, bem como “tratar os conteúdos de ensino de modo contextualizado” (…)  no sentido de  estimular o aluno  a ter autonomia intelectual.  (PCN'S, 2000, p.75)

          Tais parâmetros, ao enfatizar  a atividade do aluno no processo de aprendizagem,   supõem que a escola contribua na constituição de uma “cidadania de qualidade nova”,  “cujo exercício reúna conhecimentos e informações a um protagonismo responsável, para exercer direitos que vão muito além da representação política tradicional (...)”.  (PCN'S, 2000, p. 59). Neste sentido, é válido ressaltar, como exemplo ilustrativo, experiências de estudantes do ensino médio em espaços como o “Parlamento Juvenil do Mercosul.”

          Trata-se aqui de um espaço de participação no qual  jovens brasileiros, argentinos, paraguaios, uruguaios, bolivianos e colombianos, discutem sobre a educação. A primeira reunião do Parlamento Juvenil do Mercosul ocorreu na cidade de Montevidéu, capital do Uruguai, em outubro de 2010, congregando cerca de 126 adolescentes, visando a apresentação de propostas para a educação, especialmente o ensino médio, no contexto latino-americano. A criação de equipes multidisciplinares nas escolas;  garantia do ensino médio público obrigatório, laico e gratuito; melhoria no transporte e alimentação nas escolas e a criação de projetos para preservação do meio ambiente  foram algumas das propostas apresentadas pelos alunos no referido parlamento. Cabe ressaltar que, nesta experiência, dos cinco jovens brasileiros selecionados para representarem o país, uma é estudante de uma escola pública do município de Iracema, no Ceará. Fontes: http://parlamentojuvenil.educ.ar/pt-brhttp://portal.mec.gov.br. Acessos: 19/10/2010. Jornal O Povo de 11 de Outubro de 2010. pág. 12.

          Em face de uma pedagogia focalizada na atividade do aluno, qual seria, então,  o papel do professor?  Conforme os referidos parâmetros curriculares a “proposta pedagógica [da escola] não existe sem um forte protagonismo do professor e sem que este dela se aproprie.”  (PCN'S, 2000, p.70). Desta forma:

        O exercício pleno da autonomia se manifesta na formulação de uma proposta pedagógica própria, direito de toda instituição escolar. Essa vinculação deve ser permanentemente reforçada, buscando evitar que as instâncias centrais do sistema educacional burocratizem e ritualizem aquilo que no espírito da lei, deve ser, antes de mais nada, expressão de liberdade e iniciativa, e que por essa razão não pode prescindir do protagonismo de todos os elementos da escola, em especial dos professores. (PCN'S, 2000, p. 72).

        No que se refere a proposição de  uma “cidadania de qualidade nova”,  os Parâmetros Curriculares Nacionais ao apresentarem definições de  “conceitos estruturadores” no ensino de disciplinas das Ciências Humanas, dentre as quais, a Sociologia, destaca a “cidadania”, o “trabalho” e a “cultura” como aqueles fundamentais para o ensino desta discliplina na  atualidade. 

       Assim, a elaboração de tais conceitos, particularmente o de “cidadania”, suscita pesquisar sobre as relações indivíduo e sociedade; as instituições sociais e o processo de socialização; a definição de sistemas sociais; a participação política de indivíduos e grupos; os sistemas de poder e os regimes políticos;  as formas de Estado; a democracia; os direitos dos cidadãos; os movimentos sociais, etc. (PCNEM, p.88).   Com efeito, tais questões são compatíveis com a discussão do protagonismo, especificamente, quando se reflete sobre este conceito a partir da ação de atores sociais.

         Importante destacar que, em 2006, foram elaboradas as Orientações Curriculares Nacionais (OCN's) de modo a esclarecer alguns pontos dos Parâmetros Curriculares Nacionais, como, por exemplo, o desenvolvimento de alternativas  didático-pedagógicos no trabalho escolar. Embora este documento consista num conjunto de reflexões voltadas para orientação de práticas docentes, também aqui é ressaltado o desafio da aprendizagem autônoma e contínua ao longo da vida de modo a preparar o jovem para participação nas sociedades contemporâneas. (OCN's, 2006, p.06).

         Do ponto de vista pedagógico, a proposta do “protagonismo juvenil”, como método de trabalho  em espaços de educação formal e não-formal, está  fundamentada na chamada pedagogia ativa, cujo foco é a “criação de espaços e condições que propiciem ao adolescente empreender ele próprio a construção de seu ser em termos pessoais e sociais” (COSTA, 2001, p.9). Aqui o professor, mais do que alguém que repassa conteúdos, assume um papel de mediador, “situando o aluno no centro do processo educativo, deslocando o eixo desse processo para a aprendizagem, de modo a minimizar, assim, a dimensão do ensino.” (FERRETTI, et al, 2004, p. 414-415).

          Na análise do conceito de “protagonismo juvenil”, e com base nos  discursos de organismos internacionais, organizações governamentais e não -governamentais, constato  que esta é uma expressão carregada de significado político, sociológico e pedagógico.  Como um conceito orientador de práticas sociais com adolescentes e jovens, seja em espaços de educação não-formal (ong's, igrejas, movimentos populares, conselhos), ou em espaços de educação formal, como a escola e a universidade,  o “protagonismo juvenil” admite interpretações heterogêneas, agregando a palavra “protagonismo” ideias como  “participação”, “cidadania”, “autonomia”, “responsabilidades”, “ação individual e/ou coletiva”,  “empoderamento”, “resiliência”,  além de outras. Palavras não necessariamente sinônimas, mas que convergem para um significado comum, que é o reconhecimento dos jovens como sujeitos. Assim, possíveis de ocuparem, a partir da experimentação de um processo de construção social, que inclui uma relação dialógica, um lugar relevante em espaços de tomada de decisões sobre questões que repercutem em suas próprias vidas.

         Embora se constate a presença da palavra “protagonismo” em documentos governamentais brasileiros referentes à política educacional do país na década de 1990, como a mencionada Resolução CEB/CNE de 1998, é somente a partir dos anos 2000 que se tem registro da expressão completa “protagonismo juvenil” em documentos governamentais, tais como a Proposta de Emenda Constitucional nº 138-A de 2003, que dispõe sobre a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais da juventude brasileira, o Projeto de Lei nº 4529 de 2004, que institui o Estatuto da Juventude e Projeto de Lei nº 4530 de 2004 sobre o Plano Nacional de Juventude, tema de discussão para um  próximo artigo.

        

REFERÊNCIAS

DELORS, Jacques, et al. Da coesão social à participação democrática. In: Educação um tesouro a descobrir: relatório para UNESCO da comissão internacional sobre educação para o século XXI. Cortez, UNESCO, MEC.

BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio, 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf. Acesso: 30/09/2010.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ciências Humanas e suas tecnologias. Secretaria da Educação Média e Tecnológica: MEC, SENTEC, 2002.

BRASIL. Resolução CEB/ CNE nº 3, de 26 de Junho de 1998. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação.  Disponível em http://www.mec.gov.br. Acesso: 01/01/2010.COSTA, Antônio Carlos Gomes. Tempo de servir: o protagonismo juvenil passo a passo. Belo Horizonte: Editora Universidade, 2001.

FERRETTI, Celso, ZIBAS, Dagmar, et al. Protagonismo juvenil na literatura especializada e na reforma do ensino médio. In: Cadernos de Pesquisa, v. 34, n° 122, p.411-423, Maio/Agos. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v34n122/22511paf.  Acesso: 01/01/2010

SOUZA, Regina Magalhães. O discurso do protagonismo juvenil. São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Ciências Sociais).

     

* Artigo resultante de dissertação de mestrado em sociologia, Universidade Federal do Ceará, 2011.

  Autora: Maria Alda de Sousa

 

           
 

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imagem de Liliane Souza e Silva

Sociologia no ensino medio

Acredito que a promoção do protagonismo juvenil, em especial no ensino médio, passa também pelo trabalho da sociologia. Através dela podemos oferecer ao jovem uma visão critica a respeito da sociedade em que vivemos, participando como cidadãos ativos. Ótimo refletir sobre protgonismo juvenil!

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