O Ensino Médio após a LDB de 1996: trajetórias e perspectivas

O Ensino Médio após a LDB de 1996: trajetórias e perspectivas

Profª Drª Monica Ribeiro da Silva
monicars@ufpr.br

Pouco mais de 50% dos jovens cursam o ensino médio na faixa etária adequada. Em torno de 35% o fazem no turno noturno em precárias condições. O Brasil possui 10.357.874 de jovens entre 15 e 17 anos de acordo com o censo de 2011. Destes, 5.451.576 estão matriculados no Ensino Médio. A matrícula total nessa etapa da educação básica é de 9.507.924 alunos, o que indica que um número bastante expressivo possui mais de 17 anos. Os dados mostram, ainda, que parcela significativa da população de 15 a 17 anos encontra-se no ensino fundamental ou fora da escola.
Diante desse quadro vê-se ressaltada a necessidade de re-significação urgente da instituição escolar e de se pensar a política pública para o ensino médio tomando por referência os sujeitos que o freqüentam, suas necessidades e expectativas, suas identidades e diferenças, atribuindo sentido à experiência escolar de modo a conter o abandono e revigorar o tempo vivido na escola.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 consagrou o ensino médio como educação básica. Este é um aspecto realmente positivo da Lei no sentido da definição de uma identidade para essa etapa educacional, em que pese não ter sido assegurada a necessária condição de obrigatoriedade.  A Lei 9394/96 define que a educação escolar deve estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social e que compete à educação básica possibilitar uma formação comum com vistas ao exercício da cidadania e ao fornecimento dos meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (Art. 22).
O ensino médio com duração mínima de três anos possui, conforme a LDB, as finalidades de consolidação e aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; de preparação básica para o trabalho; de formação ética, de desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico do educando; de compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos (Art. 35).
Tendo em vista alcançar essas finalidades, a LDB propõe que o currículo e a organização pedagógica do ensino médio confiram especial ênfase à educação tecnológica básica; à compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; ao processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; à língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania.
A concepção de ensino médio estabelecida na LDB traz, de forma genérica, a incorporação da idéia de uma educação tecnológica, que deveria ser capaz de relacionar teoria e prática, mundo da ciência e mundo do trabalho, enfim, algo que se assemelha a uma formação politécnica, proposição que vinha sendo alvo das discussões entre os educadores nos anos que antecederam a elaboração da LDB, bem, como nos momentos em que, a pretexto dela, realizaram-se inúmeros debates nos quais a questão da definição da identidade dessa etapa da educação básica era preocupação recorrente. Distanciando-se, no entanto, dessa compreensão ampliada, o texto final da LDB toma o trabalho em um sentido mais restrito e pragmático, dimensionado como ocupação ou emprego.
Entre os anos de 1995 e 2000 são produzidos vários documentos de política que, se divergem em sua natureza – ora assumem o caráter de proposta, ora têm uma função normativa – manifestam uma mesma intencionalidade, qual seja, a de produzir mudança significativa na estrutura curricular do ensino médio. Os principais documentos oficiais que explicitam essa intenção são os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), produzidos sob orientação do MEC pela sua Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC); as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), explicitadas no Parecer 15/98 e na Resolução 3/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação; e, ainda, as duas formas de avaliação, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
A política norteadora da reforma curricular esteve articulada ao pressuposto de uma propalada necessidade de articulação entre demandas da economia e educação escolar. Esse pressuposto se mostrou ora de forma explícita, ora subsumido no interior dos dispositivos legais que fundamentaram e normatizaram a reforma do ensino médio no momento imediatamente após a promulgação da LDB. No que diz respeito à reforma curricular, o pressuposto da necessidade de adequação da escola média às demandas da economia traduzia-se, como mostram os textos oficiais, na necessidade de mudança do paradigma curricular. De modo recorrente as proposições oficiais afirmavam que a organização do currículo com base nos saberes disciplinares tradicionais não mais responderia às demandas da esfera produtiva, especialmente no que diz respeito à formação para o mundo do trabalho. Em substituição, foi proposta a organização curricular com base na definição de competências e habilidades.
A multiplicidade de origens e significados atribuídos ao temo competências entre os diferentes dispositivos normativos permite identificar dentre eles uma certa fragmentação. O discurso é fragmentado, porém não é desarticulado. Ele se articula à lógica posta pela “nova economia”, justificativa presente nos textos normativos e que, no campo da educação, conduziria à homogeneização dos requisitos de formação. Observa-se ainda, tanto nas proposições dos PCNEM e das DCNEM, quanto nos encaminhamentos do SAEB e do ENEM, que os formuladores do discurso oficial partiram da pressuposição de que o emprego da noção de competência fosse algo consensual, amplamente partilhado e de conhecimento, inclusive, por parte dos que teriam que lidar com essa referência sem terem, no entanto, se envolvido com o processo de definição dessas políticas, os professores. Essa pressuposição explica, por exemplo, a fluidez e as ambigüidades presentes na maneira com que é exposta a noção de competências nas poucas vezes em que se tenta defini-la, ou nas inúmeras vezes em que é prescrita como resultado desejado da formação. Tal fluidez, não por acaso, articula-se à subordinação da formação à lógica da sociedade de mercado, bem como à forma a-histórica com que se procede à definição dos pressupostos e das prescrições curriculares.
O modo como está retratada a relação entre mudanças tecnológicas, mudanças no conhecimento e necessidade de mudanças na educação escolar ilustra a maneira pela qual os propositores desses Parâmetros e Diretrizes recaíram em um determinismo tecnológico que circunscreve uma visão parcial e limitada do papel da escola, pois a restringe à formação para o mercado de trabalho, insere as finalidades da formação humana no quadro restrito da produção econômica, ainda que afirme uma pretensa formação para a cidadania, que se confunde com os anseios de observância à lógica mercantil.
Os limites dessas proposições, o novo cenário político brasileiro a partir do início dos anos 2000, os debates em torno de um novo Plano Nacional de Educação revigoraram o debate em torno das políticas para o ensino médio.
A Emenda Constitucional 59/2009 e o novo Plano Nacional de Educação sinalizam na direção da universalização do acesso à última etapa da educação básica, o que implica na ampliação do financiamento e na criação de possibilidades curriculares que propiciem a atribuição de novos sentidos ao currículo do ensino médio e à experiência vivida na escola pelos jovens (e adultos) que a freqüentam, considerando a diversidade das culturas e identidades juvenis, as necessidades e expectativas de seus sujeitos, e as demandas postas pela sociedade atual.
É nessa direção que caminham algumas das ações governamentais, como por exemplo, o Programa Ensino Médio Inovador (PROEMI), que desde 2009 apóia o desenvolvimento de propostas curriculares diferenciadas, por meio de apoio técnico e financeiro com vistas a disseminar junto aos sistemas de ensino as experiências em torno de um currículo dinâmico, flexível e compatível com as exigências dos alunos e da sociedade contemporânea.
Na esteira da formulação de novos cenários para o ensino médio estão ainda as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB 05/2011 e Resolução CNE/CEB 02/2012). Essas diretrizes têm como fundamento a formação integral do estudante, o trabalho como princípio educativo e a pesquisa como princípio pedagógico; a educação em direitos humanos; a sustentabilidade ambiental como meta universal; a indissociabilidade entre educação e prática social, considerando-se a historicidade dos conhecimentos e dos sujeitos do processo educativo, bem como entre teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem; a integração de conhecimentos gerais e, quando for o caso, técnico-profissionais realizada na perspectiva da interdisciplinaridade e da contextualização; o reconhecimento e aceitação da diversidade e da realidade concreta dos sujeitos do processo educativo, das formas de produção, dos processos de trabalho e das culturas a eles subjacentes; a integração entre educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como base da proposta e do desenvolvimento curricular.
O ensino médio terá, portanto, sua organização pedagógico-curricular organizada de modo a considerar o trabalho, a ciência, a cultura e a tecnologia como dimensões da formação humana e eixo da organização curricular. O texto das DCN para o ensino médio assim compreendem essas dimensões:
§ 1º O trabalho é conceituado na sua perspectiva ontológica de transformação da natureza, como realização inerente ao ser humano e como mediação no processo de produção da sua existência;
§ 2º A ciência é conceituada como o conjunto de conhecimentos sistematizados, produzidos socialmente ao longo da história, na busca da compreensão e transformação da natureza e da sociedade.
§ 3º A tecnologia é conceituada como a transformação da ciência em força produtiva ou mediação do conhecimento científico e a produção, marcada, desde sua origem, pelas relações sociais que a levaram a ser produzida.
§ 4º A cultura é conceituada como o processo de produção de expressões materiais, símbolos, representações e significados que correspondem a valores éticos, políticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade. (Brasil, Parecer CNE/CEB 05/2011).

Essas Diretrizes estabelecem ainda que a organização curricular do Ensino Médio possua uma base nacional comum e uma parte diversificada (Art. 7º) e que as mesmas não se constituem em blocos distintos, mas em um todo integrado. O currículo deverá se organizar em quatro áreas do conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas.
Diante desse novo cenário um conjunto de ações se coloca no horizonte, dentre elas a necessidade de revisão das políticas de avaliação, de reconfiguração dos tempos e espaços escolares, de revalorização do trabalho docente e da formação professores para o ensino médio. Sem essas ações, reitera-se o quadro de exclusão e abandono na última etapa da educação básica. Com elas, vislumbra-se um ensino médio capaz de dar respostas aos anseios de milhares de jovens e de adultos que ainda depositam na escola a esperança de uma vida melhor de ser vivida.

Referências:
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer 05/2011. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília. Maio de 2011.
SILVA, Monica Ribeiro. Currículo e competências: a formação administrada. São Paulo: Cortez, 2008.
SILVA, Monica Ribeiro. Perspectivas Curriculares Contemporâneas. Curitiba: Editora Ibpex, 2012.
SILVA, Monica Ribeiro. Tecnologia, trabalho e formação na reforma curricular do ensino médio. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n.137, p.441-460, maio/ago. 2009. d em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-15742009000200007&script=sci_a...