Uma jovem está parada na rua olhando o celular. Pouco depois, vários policiais estacionam suas motos ao seu lado. Alguém fala e ela responde. Não é possível ouvir o que dizem, mas em seguida, eles decidem detê-la. “Eu estou sendo presa por desacato a autoridade porque o policial me chamou de gostosa e achou isso certo”, grita para a câmera logo ali.
Sim, ele chamou ela de gostosa e ela não gostou. Reagiu. A punição? Xilindró, lógico!
A cena aconteceu durante a manifestação de ontem em defesa da educação no Rio de Janeiro. Nela, podemos perceber, ao vivo e a cores, o resultado perverso da combinação entre autoritarismo e uma sociedade que oprime as mulheres.
Comecemos nossa curta análise pela autoridade: o Estado detém, em nossa sociedade, a prerrogativa do uso da força (eu até diria monopólio, mas acho que isso não se aplica ao Rio de Janeiro, com seu tráfico e suas milícias).
A Polícia Militar, um de seus braços armados, é responsável por “manter a ordem”, ou seja, deixar as coisas tal como elas estão, sem qualquer perturbação aos governantes e aos de cima.
Essa “missão” já seria suficiente para motivar as frequentes repressões aos protestos, em especial quando eles têm como alvo agências bancárias, representantes simbólicas da concentração do capital. Mas, soma-se a isso o fato de a nossa PM seguir com todos os seus vícios, mandos e desmandos da ditadura civil-militar, prendendo primeiro e perguntando quem é depois. E voilà: temos uma polícia que sai batendo a torto e a direito e esguichando gás de pimenta como se estivesse desinfetando baratas. Uma PM que justifica essas mesmas ações com um sonoro “fiz porque quis”.
Na situação descrita no começo do texto, porém, há um fator a mais: ela foi detida não só porque estava nos arredores do protesto, o que já demonstraria toda essa arbitrariedade da polícia, mas porque reagiu a uma situação de assédio sexual. Não aceitou ser chamada de “gostosa”.
Nossa sociedade é perpassada por uma série de relações hierárquicas desiguais: de classe, de raça/etnia, de sexualidade e, claro, de gênero. Isso quer dizer que as mulheres (e não me refiro aqui ao sexo feminino) estão em uma posição de inferioridade em relação aos homens e, pior que isso, elas são histórica e socialmente consideradas suas propriedades.
Esse sentimento de posse não é apenas exercido de maneira individual, por exemplo em um casamento, mas é também coletivo. A noção de que a mulher é um objeto perpassa o microcosmo para chegar à coletividade: servimos tanto para o trabalho doméstico “gratuito” quanto para sermos “tomadas” ou “assediadas” na rua, quando os homens não “conseguem” segurar seus impulsos sexuais.
A opressão é uma realidade cotidiana. Em pesquisa recente do Think Olga, feita com 7762 mulheres, 99,6% das entrevistadas disseram que já haviam recebido cantadas e 83% delas não gostavam disso, mas apenas 27% conseguiam reagir.
Ou seja, a garota do vídeo está entre uma minoria que consegue, mesmo diante de toda a desigualdade que vivemos, não se calar. E o resultado é uma punição absurda, em que o deveria ser um belo exemplo de insubordinação das mulheres transforma-se em uma lição do que não pode se repetir.
Afinal, não deveria ser o policial militar o encarcerado por assédio sexual e por abuso de autoridade? Como é possível mudar essa realidade no Brasil? Seria a hora de pensarmos na desmilitarização da policia?