‘Em nossas escolas aluno é professor, e vice-versa’
‘Em nossas escolas aluno é professor, e vice-versa’
POR DAVI LIRA
Aos 16 anos, o então jovem estudante israelense Yaacov Hecht, hoje com 56, se aborreceu com a escola. Naquele momento, ele não via sentindo em frequentar o colégio. Para Hecth, a escola não conseguia responder aos seus questionamentos de então: “Por que nós devemos estudar o que estudamos? Por que para todas as nossas dúvidas, os professores oferecem apenas uma resposta? E por que o conhecimento é medido apenas por provas?”. A todos esses questionamentos, o israelense não conseguiu as respostas que esperava naquele momento. Essa situação emblemática, recordada durante a adolescência, foi a semente da construção de um modelo de educação baseado em uma outra lógica de aprendizagem, estruturada por meio de uma maior autonomia do estudante e de um regime de colaboração intensa entre toda a comunidade escolar.
Precursor do conceito de educação democrática, Hecht foi o principal articulador da implantação desse modelo de escola numa unidade em Hareda, cidade localizada a 45 km da capital Tel Aviv. Lá, em 1987, o israelense desenhou uma escola diferente de todas as outras. “O nosso principal objetivo era construir uma escola similar ao mundo que estava fora dela. O que vemos hoje é que as escolas são tradicionais e não estão conectadas com o mundo real ao seu redor. Lá fora, ninguém vai dizer o que você tem que fazer. Você tem que aprender por si só a tomar suas próprias decisões. Em nossas escolas, ensinamos o que o mundo exige que nós devemos aprender”, fala Hecht.
crédito antonchalakov / Fotolia.com
Apoiando-se na disseminação de uma nova forma de aprendizado, o israelense conseguiu disseminar, a partir de 1995, o modelo de Hareda a escolas públicas de mais de 12 cidades de Israel. “A cada ano, buscamos, a partir de encontros com educadores em vários países, expandir a maneira como encaramos a educação. Hoje, em todo o mundo já são mais 1.000 unidades que partilham dos nossos conceitos”. Com um trânsito frequente em rodas de especialistas e entre entusiastas que defendem a criação de um novo modelo de escola, Hecht está cada vez mais atento às possibilidades que a tecnologia pode oferecer a essa nova lógica de aprendizado contemporâneo.
“Atualmente, estou em contato com Ken Robinson e Sugatra Mitra. Queremos construir plataformas para ajudar jovens estudantes e empreendedores que buscam criar soluções para a melhoria da educação. Não apenas alunos, mas também professores, pais, diretores. Queremos encontrar ideias inovadoras ao redor do mundo. Nosso objetivo será criar ambientes digitais onde essas pessoas e suas ideias possam se encontrar num mesmo espaço”, fala Hecht.
Para entender mais a motivação do israelense em mudar os sistemas educacionais tradicionais e também sua opinião sobre o atual modelo de ensino, confira a entrevista que o educador concedeu ao Porvir durante sua passagem por São Paulo no final de setembro.
Prezamos, a todo custo, pela gestão democrática nas escolas. Dentro da própria unidade, vivemos como se fôssemos um pequeno país. Temos um parlamento e dentro dele um comitê de mediação.
O que significa para o senhor uma educação democrática?
Para entendermos o conceito de escolas democráticas, precisamos entender o contexto histórico. Mesmo tendo mudado de regime democrático nas últimas décadas, muitos países não modificaram seus sistemas educacionais. O que vemos atualmente é que, o mesmo tipo de educação que preparava as pessoas quando os países nem sequer eram democráticos continua sendo replicado hoje. O nosso grande desafio é construir um sistema que esteja preparado para lidar com pessoas que, hoje, vivem em países que respeitam os direitos humanos. Esse é o grande objetivo do que nós chamamos de educação democrática.
Mas como seria o desenho de uma escola democrática?
Seria um espaço onde a diferença é bem vinda. Para nós, ela é muito importante. Nas nossas escolas, as crianças podem ensinar outras crianças e até os seus próprios professores. O principal é que cada aluno pode escolher o que quer estudar. Também buscamos defender que a melhor forma de estudar é ensinando e não apenas ouvindo. Nas nossas escolas, todos são professores e alunos ao mesmo tempo.
Vocês defendem, então, uma ampla autonomia dos estudantes?
Os alunos precisam saber escolher o que querem para suas próprias vidas. Trabalhamos muito a questão da escolha e da tomada de decisão. Não necessariamente o objeto da escolha, mas o ato da escolha.
O senhor poderia detalhar mais como ocorrem essas interações?
Prezamos, a todo custo, pela gestão democrática nas escolas. Dentro da própria unidade, vivemos como se fôssemos um pequeno país. Temos um parlamento e dentro dele um comitê de mediação. Toda a comunidade escolar, incluindo pais, alunos, professores e funcionários criam as regras de convívio e funcionamento da escola. Representantes de cada grupo se reúnem semanalmente. Se algum estudante ou até professor romper com alguma regra, qualquer outro membro da comunidade pode “denunciá-lo” à corte do parlamento – formada por representantes de toda a comunidade escolar. Lá, a situação será resolvida com a ajuda do comitê de mediação. Nessa instância, todo mundo tem voz.
E como funciona esse poder de escolha dos alunos sobre o que estudar?
É fundamental escutá-los e trabalhar assuntos que são relevantes para eles. E tratamos sempre de orientá-los a pensar sobre as questões que têm impacto em suas vidas. Dessa forma, quando focamos em seus interesses, nem precisamos estimulá-los a frequentar a escola – eles vêm naturalmente. Percebemos que os alunos querem saber como criar um negócio próprio ou como sobreviver nas cidades. Se tratarmos de questões que lhes interessam, eles vão querer aprender sobre elas.
Mas como conhecer as necessidades dos alunos?
No nosso modelo, cada estudante escolhe um adulto da comunidade escolar para ser o seu tutor – alguém em que o estudante pode confiar, contar segredos, falar sobre suas expectativas. Com o passar dos tempos, alunos mais velhos e mais experientes podem até se tornar tutores de alunos mais novos.
Assim como os alunos, buscamos sempre incentivar os professores a trabalharem juntos dentro da mesma lógica da equipe de futebol.
E o professor, qual deve ser sua postura?
Acreditamos que cada criança é forte em certas habilidades e competências. Cabe ao professor, primeiramente, identificar esses pontos fortes e estimulá-los. Depois disso, focar nas dificuldades e nos pontos fracos. É importante disseminar o principal motivo pelo qual vivemos: contribuir com o mundo com a nossa individualidade. As escolas não podem tratar os alunos como pessoas iguais. Os professores precisam conhecer as particularidades de cada aluno.
Depois de identificar as peculiaridades de cada estudante, qual o passo seguinte?
É preciso disseminar a ideia de trabalho em equipe a favor de objetivos comuns. Em escolas tradicionais, cada aluno tem uma nota em cada matéria. E cada um acaba competindo entre si dentro da escola. Nas nossas unidades, damos conceitos iguais para cada aluno. Cabe ao grupo, de forma conjunta, alcançá-lo. Assim, acabamos transformando a sala num time.
E como estimular a parceria entre os professores?
Assim como os alunos, buscamos sempre incentivar os professores a trabalharem juntos dentro da mesma lógica da equipe de futebol. Não importa as matérias, o professor de português pode se reunir com o professor de matemática e trocar experiências. As crianças também têm espaço para dar feedbacks aos professores. Estimulamos a colaboração na sala de aula, na escola, na cidade e no país, numa espécie de movimento em cascata.
Se olharmos para as ruas de cada cidade, podemos perceber que cada restaurante pode funcionar como espaço de aprendizado. Lá, os estudantes podem aprender mais sobre os alimentos.
Os espaços de aprendizagem acabam por ultrapassar os muros da escola…
Isso. Defendemos o conceito de Cidade Escola, que pode ser resumido em apenas um aspecto: colaboração mútua. Uma colaboração concretizada dentro da escola, fora dela, na cidade e também no âmbito mais amplo: o do país. Enquanto que, em escolas tradicionais temos professores que ensinam a turmas de 30 a 40 alunos, nas nossas escolas autocolaborativas, estudantes se transformam em professores. Vai caber ao professor, identificar os estudantes que têm mais facilidade em cada matéria.
Mas como expandir a escola para a cidade?
O que as cidades devem fazer é utilizar o que têm à favor da educação, independente dos problemas e limitações de infraestrutura. Se olharmos para as ruas de cada cidade, percebemos que cada restaurante pode funcionar como espaço de aprendizado. Lá, os estudantes podem aprender mais sobre os alimentos. Hospitais também podem funcionar como escolas. E o Brasil, tem plena capacidade de liderar esse movimento à nível mundial. Não encontro tamanho entusiasmo em outros lugares do mundo. Mas antes de ensinar ao mundo, o país deve começar a revolucionar sua própria realidade.
Os professores devem ser considerados figuras centrais, não?
Em vários países do mundo, existem movimentos de professores que pedem aos governos que eles sejam os líderes da mudança dos sistemas de educação. Em países com a Finlândia, toda a sociedade confia neles. A ideia de confiança nos professores deveria ser difundida em todo o mundo. Devemos escutar os nossos professores e deixá-los mais livres. Eles precisam de mais atenção e autonomia.
E a tecnologia pode estimular a implantação desse modelo democrático?
A tecnologia está presente dentro da escola. Ela é trazida pelos alunos. O problema é que as escolas obrigam a tecnologia a permanecer dentro do bolso dos estudantes. Os educadores precisam perceber que as possibilidades que ela traz são inúmeras. Com as novas ferramentas, é possível chegar mais longe do que o lápis e o papel, antes, conseguia chegar.
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