Temáticas escolhidas pelos jovens surpreendem por fugir da violência normalmente retratada em filmes sobre a periferia
Sérgio Rizzo
Autor dos roteiros de Bicho de sete cabeças (2001), Chega de saudade (2007) e As melhores coisas do mundo (2010), o jornalista Luiz Bolognesi estreou na direção de longa-metragens de ficção com a animação para jovens Uma história de amor e fúria (2012), que venceu o Festival de Annecy (França), o principal do gênero. Engana-se, no entanto, quem acredita que algum desses trabalhos ocupe o posto número um entre as melhores recordações de sua carreira.
A "experiência mais marcante" na vida de Bolognesi foi, segundo ele, vivida antes que essas obras para cinema existissem, em 1988 e 1989, quando trabalhou como professor de uma escola pública em Paraíba, no sul da Bahia. "Dava aula para uma sala multisseriada, com alunos de 7 a 14 anos", lembra. "Havia duas lousas no mesmo espaço, uma turma sendo alfabetizada e outra, mais adiantada. Foi algo muito forte. Eu vivia em uma comunidade de pescadores, muito pequena, sem energia elétrica."
Bolognesi observa também que os moradores "eram muito conservadores" e "se assustavam com informações que saíam da escola". Ele guardou na memória a "resposta muito legal das crianças" e considera que teve "um aprendizado muito grande" porque "elas sabiam mais do que eu". "Alguns desses alunos já são avós", emociona-se. Não causa estranhamento, portanto, que ele se mantenha ligado, como cineasta, à educação e à realidade das escolas públicas brasileiras.
Em companhia de sua mulher, a diretora Laís Bodanzky (que assina os três filmes mencionados no início do primeiro parágrafo), Bolognesi realizou a série "Educação.doc", exibida entre março e maio de 2014, no programa "Fantástico", da Rede Globo (em seis episódios), e também no canal pago Globo News (em cinco). O projeto foi consolidado em forma de livro acompanhado por DVD (Ed. Moderna/Buriti Filmes).
O casal também se dedica a um projeto de exibição itinerante de filmes em cidades e bairros sem salas de cinema. Essa iniciativa deu origem, por sua vez, a um projeto de oficinas de realização audiovisual para alunos e professores de escolas públicas. Agora, as duas experiências estão reunidas no livro Cine Tela Brasil e Oficina Tela Brasil - Dez anos levando cinema a escolas públicas e comunidades de baixa renda (Instituto Buriti, 206 págs., R$ 30).
O volume traz um DVD com os documentários Cine Mambembe - O cinema descobre o Brasil e Tela Brasil - 10 anos de cinema nas quebradas, e uma seleção de 12 curtas realizados por alunos das oficinas. Os números impressionam: os quatro caminhões usados para transportar as salas itinerantes de exibição percorreram mais de 116 mil km, beneficiaram 1,3 milhão de espectadores em mais de sete mil sessões e 759 locais; das oficinas, frequentadas por mais de três mil alunos de famílias de baixa renda, saíram 407 curtas.
"Dessas centenas de curtas, só oito têm arma de fogo", diz Bolognesi. "O olhar que eles têm para a própria realidade é muito original, muito diferente. Nós, cineastas intelectuais, da elite, e as equipes de TV também, quando vamos filmar na periferia, é para mostrar gente com arma e falar de violência. Foi o que mais tocou a gente nesse projeto: nos surpreendemos o tempo todo com os filmes dos moleques."
Bolognesi diz ter aprendido, nesses 10 anos de exibições, que "o público surpreende". "O espectador da periferia consegue digerir mais do que imaginamos", explica. "Ele é mais inteligente do que a gente pensa. As pessoas são mais sofisticadas do que a gente imagina. Encontramos um mundo mais elaborado do que pensávamos. De um modo geral, sinto que somos um pouco pretensiosos e acabamos sendo mais superficiais no imaginário que temos dos segmentos mais populares e das periferias. São pessoas que querem ver filmes diferentes, documentários sofisticados."
Nas oficinas, a surpresa se repetiu "pelo nível de envolvimento nos projetos". "Em oficina realizada em Campinas, em 2007, a Laís foi conversar com dois meninos", exemplifica. "Eles disseram que só preencheram uma ficha e apareceram. Tinham sido meio empurrados pela escola, ficou parecendo. Mas, depois da oficina, ela viu o curta deles e ficou totalmente chapada. Tem uns planos (enquadramentos que compõem a imagem) de filme iraniano. Eles tinham 14 anos."
A comemoração dos dez anos e a publicação do livro marcam também novos estágios para os dois projetos. "O Cine Tela Brasil cresceu um pouco mais do que a gente queria e podia", explica Bolognesi. "Tínhamos 40 funcionários em regime de CLT. Viramos administradores de empresa. Então, convidamos os funcionários a abrir uma empresa e eles viraram empreendedores. Passamos as salas itinerantes para eles."
Dessa forma, o casal decidiu ficar, por meio das oficinas, "exclusivamente focado em promover o encontro entre audiovisual e escola". "Acreditamos muito que audiovisual pode transformar a escola. Mas não acreditamos que ele deva entrar pela grade curricular. Deve entrar dando a câmera na mão dos meninos, para que façam o que quiserem, brinquem de filmar. Depois, você passa um filme do (Sergei) Eisenstein. Se passa antes, eles falam: 'que saco'."
Em 10 experiências-piloto desenvolvidas ao longo de 2014, grupos batizados de NAVE (Núcleo de Audiovisual na Escola) reúnem alunos e professores que promovem a exibição de filmes, acompanhada de debates, e a realização de curtas. "Agora, queremos corrigir a rota e constituir um dossiê sobre essa intervenção para criar um conhecimento que possamos passar às redes públicas estaduais e municipais, e ao MEC, para que eles deem escala", planeja Bolognesi.