Ações afirmativas nas universidades paulistas: a necessidade urgente de ampliar o debate e reconhecer a experiência acumulada no Brasil
Fonte: Ação Educativa (www.acaoeducativa.org)
Desde os anos 1990 vem se intensificando a luta dos movimentos negros, estudantis, dos sem universidades e de outras organizações de educação pela adoção de políticas de ações afirmativas nas universidades brasileiras com recortes de renda e cor/raça. Tais movimentos partem da constatação da pequena presença de estudantes oriundos de escolas públicas em universidades públicas e das profundas desigualdades raciais que marcam o acesso aos direitos humanos no país.
Os atores sociais mobilizados vêm apresentando uma série de propostas sobre ações afirmativas para os governos em todas as esferas (estaduais, municipais e federal). Tais proposições baseiam-se em estudos e experiências nacionais e internacionais que deram e estão dando certo. No caso de São Paulo, pelo menos três projetos de Ações Afirmativas já passaram pela Assembleia Legislativa do estado.
Dez anos após a criação, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, do primeiro programa de ação afirmativa em uma universidade pública do país, o governo do estado de São Paulo apresenta a proposta do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (PIMESP). Elaborada pelo Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (CRUESP), a proposta pretende ser uma resposta à pressão social e dar concretude, no estado de São Paulo, ao reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da constitucionalidade das ações afirmativas nas universidades federais com recortes de renda e raça e à aprovação da lei nº 12.711 pelo Congresso Nacional, ambas ocorridas em 2012.
Porém, a proposta do PIMESP pouco reconhece e dialoga com as reivindicações dos movimentos sociais e com a experiência acumulada no país na última década. Não dialoga com pesquisas e estudos sobre programas de ação afirmativa realizados em diversas universidades brasileiras e nas próprias universidades paulistas.
Alegando a defesa da autonomia universitária e da excelência das universidades estaduais, o CRUESP tem se negado a promover diálogos e debates públicos que contribuam para o aprimoramento da proposta. Dessa forma, nega-se que a questão é de interesse público e se relaciona ao desafio de democratização da universidade pública brasileira. Como tal, é necessário que a proposta seja discutida mais amplamente pelo conjunto da sociedade, não podendo se restringir a debates pouco informados dos Conselhos Universitários.
A proposta paulista
O PIMESP tem como objetivo atingir o percentual de 50% de alunos oriundos de escolas públicas nas instituições estaduais de ensino superior, o que inclui USP, UNESP, UNICAMP, FATECs, FAMEMA e FAMERP. Deste total de 50%, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo que denominam de PPIs (pretos, pardos e indígenas). No entanto, estes alunos que ingressarem pelo PIMESP não irão acessar diretamente os cursos de graduação, e sim o Instituto Comunitário do Ensino Superior (ICES).
O ICES é inspirado nos chamados community colleges americanos, e operariam em parceria com a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP). A proposta do ICES é oferecer uma formação semipresencial de dois anos para alunos e alunas oriundos de escolas públicas, para que estes possam, posteriormente, de acordo com o desempenho, acessar os cursos de graduação regulares das universidades.
O curso de dois anos vai oferecer uma grade de disciplinas em linguagem, ciências humanas, matemática, ciências exatas e tecnologia, ciências biológicas e saúde e iniciação científica. É uma formação genérica, que propõe formar cidadãos empreendedores, e prepará-los, de acordo com o projeto, para o mundo do trabalho e para o grau de competitividade das universidades paulistas.
Em dois anos, os estudantes que passarem por este programa terão um diploma de ensino superior sem especificação de área de atuação, e poderão, caso atinjam 70% de aproveitamento, ingressar nos cursos regulares destas universidades.
A experiência dos community colleges
O PIMESP apresenta problemas que exigem discussão. A primeira delas é o modelo no qual se inspira. Os community colleges, embora possibilitem a inclusão, são instituições marginalizadas no sistema de ensino dos EUA. Para entender seu funcionamento e sentido, é preciso compreender a lógica de ingresso no sistema educacional de nível superior estadunidense.
Quando um estudante, nos Estados Unidos, está em processo de finalização do Ensino Médio, ele inicia o processo de aplicação para o college, que é como um curso de graduação genérico com disciplinas diversas, uma etapa que antecede a formação profissional mais específica. Do sociólogo ao médico, todos passam pela formação do college, que tem uma duração regular de quatro anos.
Já os community colleges foram uma saída do sistema educacional do país para incluir aqueles e aquelas que não têm como prosseguir os estudos em decorrência da impossibilidade de pagar as altas taxas das grandes universidades norte-americanas. Os community colleges oferecem dois tipos de formação com duração de até dois anos: uma formação especializada e uma formação mais geral. O programa apresentado pelas universidades estaduais paulistas se baseia nesta última.
Na formação especializada, o ingressante pode, em dois anos, obter um título que equivale a tecnólogo em alguma área específica, como enfermagem. Na segunda opção, uma formação mais geral, se enquadram também aqueles que têm expectativas de prosseguirem os estudos em uma universidade. Ao terminar o segundo ano da formação genérica do community college, o estudante pode ingressar em uma universidade americana e equivaler os créditos já concluídos na primeira instituição. Assim, ele levará o mesmo tempo para concluir os estudos do que os outros alunos que não fizeram o community college. A vantagem é que o valor pago para estudar em um community college é muito mais baixo do que o de uma universidade, o que viabiliza a entrada de mais estudantes de baixa renda.
Além disso, os estudantes dos EUA provenientes de grupos historicamente discriminados têm outras possibilidades além dos community colleges: as grandes universidades, como UCLA, Yale, Harvard, Princeton, entre outras, têm programas de ações afirmativas. Também é importante lembrar que o modelo de relações raciais estabelecido no contexto americano fez com que surgissem, ainda no século XIX, os Black Colleges, que são instituições de ensino superior criadas para o acesso da população negra. Ainda hoje existem dezenas de Black Colleges, destinados a estudantes de baixa renda.
O modelo dos ICES
O que o PIMESP propõe é que os alunos oriundos de escola pública realizem um curso de dois anos sem ter bem definida qual será sua titulação, oferecido parcialmente na modalidade de ensino a distância, o que priva esses estudantes da convivência universitária e de outros benefícios que o campus pode oferecer. Para aqueles que comprovarem rendimento de até 1,5 salários mínimos, será oferecida uma bolsa manutenção no valor de R$ 311,00.
Ao final do primeiro ano no ICES, aqueles estudantes que tiverem desempenho igual ou superior a 70% do curso, poderão ingressar em um curso regular de tecnólogo na FATEC (instituição que já conta com aproximadamente 70% de alunos oriundos de escolas públicas). Já os estudantes que quiserem ingressar nas universidades (USP, UNESP, UNICAMP, FAMERP e FAMEMA) terão que atingir desempenho igual ou superior a 70% ao final do segundo ano de formação no ICES, para acessar os cursos regulares destas instituições (que têm um percentual de menos de 30% de estudantes oriundos de escolas públicas e um percentual ainda menor de PPIs). Ou seja, os estudantes dos ICES levarão dois anos a mais para acessarem os cursos regulares das universidades do que os demais.
Ações afirmativas no restante do país
O CRUESP, ao apresentar esta proposta, ignora toda a experiência brasileira no que tange as políticas de ações afirmativas e os resultados que as mesmas vêm obtendo. Também, ao ignorar os resultados, estigmatiza os alunos de escolas públicas ao sugerir que os mesmos não têm condições de ingressar nos cursos regulares destas instituições, como já é feito em mais de cem universidades públicas do país.
É importante ressaltar que dados de avaliação dos programas de ações afirmativas divulgados por instituições pioneiras em adotar este tipo de política, como a UERJ e a UnB, e nas audiências públicas promovidas em março de 2010 pelo STF (veja abaixo os vídeos) revelam que os estudantes cotistas têm desempenho igual ou superior, a depender do curso, em relação aos ingressantes pelo sistema tradicional. O Censo da Educação Superior (2010) chama a atenção para a importância das políticas de assistência, como alimentação, moradia e bolsa permanência, para que esses estudantes deem continuidade ao curso (LAESER/UFRJ, 2012).
O que o ICES oferece é uma mescla de “cursinho” preparatório à distância para o ensino superior (nivelado como graduação), com ensino técnico profissional de qualidade discutível, baseado na lógica do empreendedorismo. O gastos previstos com o PIMESP, para 8 anos, são de aproximadamente 600 milhões de reais, que serão investidos no modelo UNIVESP de formação.
É importante que o CRUESP abra um processo de negociação e discuta abertamente sua proposta com pesquisadores das universidades, representações de trabalhadores, docentes, estudantes e movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil. É preciso recuperar a atuação que os movimentos vêm travando desde os anos 1990 pela implementação de ações afirmativas nas instituições paulistas, os projetos que já passaram pela Assembleia Legislativa, e valorizar, até mesmo, a produção acadêmica existente destas mesmas instituições sobre as desigualdades raciais e as políticas de ação afirmativa no Brasil.
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