V de Vinagre

por Érico Assis (*)

É isso que A Mídia não mostra: a placa que eu levo nas manifestações, erguida toda vez que encontro alguém com aquela máscara branca com sorriso, bigode e barbicha. Ela tem uma grande seta que eu aponto para o sujeito mascarado, e o texto:

ESTA MÁSCARA FOI CRIADA NUM GIBI
CHAMADO V DE VINGANÇA, DE ALAN MOORE E DAVID LLOYD,
publicado originalmente entre 1982 e 1988 e que trata de um
herói anarquista, no futuro próximo (1997!), cuja missão é
derrubar um governo inglês fascista através de atos terroristas
E NÃO NAQUELE FILME
de mesmo nome que deturpa a premissa original ao retratar o personagem V
não como o devido anarquista da referida obra em quadrinhos, mas como “mero liberal radical”,
nas palavras tanto do grupo A de Anarquia, quanto de Alan Moore, que lançou campanha pública de repúdio ao
filme e abriu mão de todos os lucros advindos da adaptação, a qual desfila efeitos especiais ao invés de promover o ideal anárquico.

Cada um com suas causas, cada um com suas placas. Me deixem.

* * * * *

Neil Gaiman já gracejou que a rima “remember, remember / the fifth of november” deve ter sido invenção de Shakespeare. As crianças britânicas cantam a rima na Noite da Fogueira desde o 5 de novembro de 1605, quando Guy Fawkes tentou explodir o Parlamento com barris de pólvora. Fawkes era inimigo número um da sociedade, o Bin Laden das antigas. Com o tempo, as crianças passaram a comemorar a data não só com a fogueira — na qual queimam um boneco de Fawkes, tipo Malhação de Judas —, mas também usando máscaras de Fawkes, com barba e chapéu em cone.

Quase 400 anos depois, David Lloyd começou a rabiscar o personagem que ele e Alan Moore tinham que inventar para uma revista. Lloyd deixou um bilhetinho para Moore: “quem sabe a gente faz ele tipo um Guy Fawkes ressuscitado, com máscara de papier machê, capa e chapéu? Ia ficar bem bizarro e Guy Fawkes ia ganhar a reputação que sempre mereceu. A gente não devia queimar o coitado no 5 de novembro, mas sim comemorar que ele tentou explodir o Parlamento!”

* * * * *

Adaptar V de Vingança para os cinemas ficou a cargo dos Irmãos Wachowski, aqueles de Matrix. Se Matrix funcionava como Baudrillard mais kung fu, V de Vingança podia funcionar como anarquia mais bullet time. Ou não exatamente anarquia, mas mais uma defesa da liberdade de pensamento e de expressão na era Bush. No clímax do filme, Londres inteira sai às ruas com máscaras de Guy Fawkes, uma revolução anônima. A cena não existe nos quadrinhos. Foi uma forma de resumir as ideias da HQ numa imagem de impacto.

(A adaptação que os irmãos fizeram de Cloud Atlas, do ano passado, caiu no mesmo liquidificador wachowskiano. O que era um discurso de fundo no livro — a crítica à dominação, a defesa das diferenças — virou panfletagem-mor do filme. Passagens inteiras viraram chamadas de cartaz ativista. Mas é filme, né? E nem ficou de todo mal. Cada um com suas causas.)

Depois veio o liquidificador do 4Chan, que desembocou no Anonymous, e no Occupy, no V de Vinagre e até o que se viu ontem na frente do Maracanã. Ser anônimo é ser V.

No ano passado, a BBC levou Moore para visitar um acampamento do Occupy em Londres. Os mascarados sabiam que a máscara tinha a ver com um filme, mas não com um gibi. Nem Moore nem Lloyd se ofenderam. Faz anos que declaram, como bons ingleses e corteses, que ficam contentes em servir de inspiração, mesmo que por meios indiretos.

* * * * *

Fucei um livrinho de entrevistas com o Moore antes de escrever esta coluna. Tem uma entrevista do início dos anos 1980 na qual ele recebe os jornalistas em casa. A conversa envolve narrativa em quadrinhos, política, Brian Eno, Stan Lee e, quando toca em sincronicidade, uma das filhas de Moore grita: “O jantar tá saindo!”.

O escritor volta-se para os jornalistas: “Vocês são homens de verdade, ou comem quiche?”

* * * * *

Por 50 e poucos reais, compra-se uma edição especial de V de Vingança (em inglês) que vem com a máscara. Os direitos da HQ, do filme, das máscaras e, enfim, da marca, são da Warner Bros., um dos maiores conglomerados de entretenimento do mundo. Há quem veja aí uma ironia: se uma das bandeiras destes movimentos é o perigo das grandes corporações, não é contrassenso usar o símbolo que vem de uma delas? Não é dar mais dinheiro à corporação?

Sim, é irônico, mas não mancha os ideias de ninguém. Pelo bem ou pelo mal, as máscaras já se dissociaram de filme, de HQ, até dos primeiros movimentos que as adotaram. É um símbolo ativista e pronto. Só os chatos orgulhosos do gibi, como eu, vão ficar lembrando que começou lá no Moore e no Lloyd. Além disso, ninguém precisa comprar só da mega corporação.

Mas o ponto mais relevante é que, quem acha que usar uma máscara de V é virar joguete da máquina do entretenimento ainda pensa que o mundo é só Nós contra Eles. Não é, nem nunca foi. Nem nos (bons) gibis.

(*) Érico Assis é jornalista, professor universitário e tradutor.
Site – TwitterOutros Quadrinhos

 

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imagem de João Carlos Moraes Perdigão

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