Violência escolar: entrada de armas, venda de drogas e presença de traficantes não são os principais problemas
A última edição do boletim semanal do Observatório da Educação tratou do anúncio, pelo governo de São Paulo, de parte de um plano de combate à violência nas escolas da rede estadual. O plano é fundamentado na instalação de câmeras nas escolas e no deslocamento de um oficial da Polícia Militar para trabalhar na Secretaria de Estado da Educação. Em continuidade ao tema, Miriam Abramovay, pesquisadora da Rede de informação tecnológica latino-americana (Ritla), concedeu entrevista sobre sua pesquisa relativa à violência nas escolas do Distrito Federal (DF). O material foi utilizado pelo poder público local na elaboração de políticas relacionadas ao tema.
OE – Como avalia a política de instalação de câmeras para monitoramento?
Miriam – Por tudo o que vemos, a partir das experiências internacionais, esse tipo de medida dá pouco resultado. É preciso pensar em medidas preventivas. Em primeiro lugar, porque provavelmente vão quebrar, é difícil que as câmeras sobrevivam. Além disso, cria-se um sentimento de espionagem nos jovens, o que para eles é muito degradante. E qual é a tendência de um adolescente ou jovem ao saber que está sendo espionado? É fazer ainda mais, tentar entrar de forma clandestina para mostrar às pessoas que consegue driblar, etc. Não é uma medida preventiva, então é complicado. Colocar câmera é muito fácil. Mas a literatura internacional diz que não adianta.
OE – Qual conceito de violência utilizado na pesquisa realizada nas escolas do DF?
Miriam - A violação dos direitos humanos das vítimas e a falta de princípios civilizatórios são construções sociais. O que é violento hoje, na nossa sociedade, pode não ser daqui a 20 anos, e vice-versa. É um fenômeno muito complexo, existem muitas facetas e muitas percepções de violência. Por isso, nos estudos sobre violência, é preciso partir do que o sujeito acha que é violento, não daquilo que a gente acha.
Há alguns conceitos que se entrelaçam. Há a microviolência, que acontece no cotidiano da escola e passa por xingamentos, brigas e pichação. Pichação também é crime, então pode ser considerada violência dura, por exemplo.
A violência simbólica e a microviolência também se entrelaçam muito. A primeira se dá pela relação de poder, é um termo criado por Pierre Bourdieu que explicava as relações de poder na sociedade e a escola como local privilegiado de relações de poder. Acontece quando o outro não pode responder. Se xingo uma pessoa de negra horrorosa e há uma resposta, não é simbólica, mas agressão verbal. Quando se dá de forma repetida e o outro não consegue reagir é uma violência simbólica. Existem muitas violências.
Há alguns autores que consideram violência apenas a dura, a que está no código penal. Na escola, se entendermos dessa forma, só vamos considerar violência a que entra de fora para dentro das escolas. Mas o que acontece nas escolas é a microviolência, não a dura. A gente vê violência de duas formas: pelo não reconhecimento do outro e pela negação da dignidade do outro.
OE – E na pesquisa realizada, que tipos de violência foram considerados?
Miriam - A violência dura, a simbólica e, principalmente, a microviolência, relacionada a xingamentos, agressões verbais, homofobia, racismo e, inclusive, a cyberviolência.
OE – Como podemos relacionar a violência com a internet?
Miriam - O fenômeno da cyberviolência tem proliferado na sociedade. Ele permite certo anonimato, pode-se colocar fotos e vídeos sem se dizer quem é o autor. São práticas muitas vezes agressivas, danosas, em que as pessoas se sentem muito humilhadas, principalmente quando filmam certos tipos de brigas, xingamentos ou até mesmo estupro, e colocam na rede, uma humilhação globalizada.
Os alunos e professores não sabem como lidar com isso, nem como se defender. Não conhecem quais são os riscos, por isso é um tema muito importante de ser discutido e conhecido pelos professores. Deve haver alguma forma de colocar isso de maneira mais clara, discutir as possibilidades de intervenção relacionadas a esses fenômenos.
OE - Como o tema das drogas aparece na pesquisa, em relação a consumo e tráfico?
Miriam – As pessoas dizem que já viram consumo e tráfico. Mas sabemos que a escola é um espaço democrático, onde todos entram. Então, pode entrar traficante, filho de traficante e irmão de traficante, porque todo mundo pode entra para a escola. Mas isso é uma violência exterior à escola. É a chamada violência dura, mas vem de fora para dentro, a escola recebe essa violência.
Tem outras que a escola pode receber e reproduz, como a discriminação, agressão, xingamentos e brigas. Essas são as que acontecem dentro da escola e a escola reproduz. Tráfico e entrada de armas vêm completamente de fora. Isso foge às possibilidades da escola resolver ou decidir. É preciso discutir muito o que fazer com esse tipo de violência.
Pela pesquisa, 20% dos alunos já viram a entrada de armas na escola. Isso é muito, deveria ser 0%. Mas os fenômenos que se dão no cotidiano não é a entrada de armas, venda de drogas, presença de traficantes. Não é esse o principal problema da escola. E a gente não pode se enganar e pensar que essa violência que vem de fora para dentro é a grande culpada do que acontece nas escolas. Neste caso, não teríamos o que fazer, nenhuma forma de mudança. E a escola pode mudar.
OE - Essa concepção influi diretamente na elaboração de políticas públicas?
Miriam – No final de nossa publicação há uma série de recomendações de políticas públicas. A primeira delas leva em conta uma grande demanda dos professores para discutir esses temas, pois não tiveram essa oportunidade em suas formações. Então, a Ritla está fazendo um curso de 180 horas, para 800 professores.
Mas há determinadas coisas que é a polícia quem resolve, não a escola. A questão do tráfico de drogas não é a escola que vai resolver. A escola pode resolver quando há brigas, xingamentos, ameaças, por exemplo. Mas o problema é que a escola vive muito dentro da lei do silêncio, por isso esse diagnóstico é tão importante. A escola não vê esses problemas cotidianos. A violência sexual, que é outra questão, ela não vê. Mesmo quando as meninas reclamam é banalizado.
OE - Na pesquisa, chama a atenção a diferença grande de percentual entre as pessoas que dizem ter visto acontecer discriminação e as que dizem já ter sofrido. Por que isso?
Miriam – A homofobia é o fenômeno que mais se vê na escola. É impressionante a porcentagem de alunos, alunas e professores que percebem a homofobia na escola. Tem uma tabela que chama muito a atenção que pergunta quem você não gostaria de ter como colega de sala: homossexual, pessoa pobre, negra, dentre outros. Quase 50% dos homens dizem não querer ter um homossexual em sua sala. Dentre as meninas, 15% o dizem. Quando perguntamos se já sofreram, evidentemente abaixa muito, “já sofri” é algo difícil de dizer. Outro número que chama a atenção: 2% dos professores não querem ter aluno negro. Isso é muito. Nesse fenômeno, todo percentual é muito gritante.
A questão da pobreza também nos chamou muito a atenção. Isso passa pela roupa e a aparência, e se dá muito pela sociedade de consumo. Nesse quadro da pobreza, há várias referências ao pé, ao tênis. Existem também apelidos que se referem ao pé sujo, de pessoas que vêm com o sapato ou tênis sujo de barro porque mora em bairro não asfaltado.
Outro preconceito é contra pessoas vindas do nordeste. Há uma série de apelidos muito fortes, agressivos. Ou seja, há preconceitos pela forma de as pessoas serem, falarem, se vestirem e pela cor das pessoas. Há muito preconceito na escola, que trabalha muito mal isso.
OE - Quanto à violência sexual, que tipo acontece e em qual intensidade?
Miriam – Perguntamos se já viram alguém tentar beijar uma pessoa na boca à força, tocar, tirar a roupa e forçar a relação sexual. Dentre os alunos, 8,3% já viram alguém forçar a ter relação sexual com alguma aluna. Existe a expressão “passar a mão”, por exemplo. Reclamam de professores que tentam tocar, chamam para sair, etc. Essas questões acontecem, mas é muito pouco falado, a escola finge que nada vê.
OE - Há relação entre situações de violência e falta de funcionários?
Miriam – Na pesquisa não, mas na devolutiva os professores mencionaram a necessidade de ter psicólogo. Como se houvesse a possibilidade do psicólogo salvar a escola, como se os problemas fossem psicológicos.
OE - Dada a realidade, o diagnóstico feito, que tipo de política pública deve ser elaborada?
Miriam – A primeira recomendação é fazer exatamente o que fez o Distrito Federal: a política pública não pode ser embasada no achismo, mas no conhecimento de realidade.
É preciso trabalhar a questão da cultura juvenil na escola, pois um dos grandes problemas são as tensas relações sociais que existem. Os professores devem ser formados, o que dá possibilidade, instrumentos e ferramentas ao professorado, para que possa entender o que está acontecendo.
Outro drama é a tensão constante com a família. É preciso abrir esses espaços da escola para que se possa falar não só sobre como vão os filhos, mas sobre o que está acontecendo no dia-a-dia da escola.
Deve-se reforçar o conselho de classe, de segurança, tudo o que seja participativo na escola é bastante importante. Outra questão importante é a existência de locais de diálogo entre especialistas, professores e secretarias de educação, para que as pessoas possam colocar suas angústias e problemas, e ver como resolvê-los.
Para reforçar a questão da cultura juvenil, acredito que os projetos culturais são muito importantes nas escolas. Isso é algo sobre o que os jovens reclamam muito. Nos dados da pesquisa, ficamos assustados por ver como há pouco acesso a cinema e teatro, por exemplo, tanto para alunos como professores e diretores. Também é importante levar para dentro da escola uma cultura que é juvenil, como o hip hop, para que eles possam se sentir mais ligados à escola.
Além disso, é preciso rediscutir as regras das escolas, para que seja mais democrática. Em geral, os alunos não as entendem e muitas delas são vistas de formas diferentes por cada um dos atores e colocadas em prática de formas diferentes. O uso do celular é um exemplo, saber quem pode e quem não pode. Isso gera conflito. E a questão de pertencimento relacionada a adolescência e juventude é fundamental. A escola é o único espaço público que eles têm acesso.
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