Somos todas Nicole Bahls
Goiânia - Qual é a primeira coisa que se passa na sua cabeça quando dizem que a mulher foi violentada? Provavelmente o mesmo que na minha. Uma rua meio escura, um estranho que agarra uma mulher à força, transa com ela e depois a deixa jogada na sarjeta. Algo feito por um estranho em um local indevido.
O que vem à sua mente, ainda, quando se diz violência contra mulher? A imagem que me salta aos olhos é aquela estampada em cartazes e propagandas de uma mulher com um roxo no rosto. Penso, então, em um homem espancando a companheira.[...] A violência mais corriqueira e avassaladora é silenciosa. Aquela que faz a própria mulher se questionar se foi mesmo violentada. E ela pode levar horas, dias, meses ou anos para se dar conta de que foi violentada. Esse tipo de violência é mais cotidiana.
Uma mulher é violentada quando avançam sobre o limite do seu próprio corpo sem algum consentimento. Qualquer que seja esse limite. Uma mulher passa por uma violência quando é constrangida e não tem poder, força ou condições de agir de forma diferente.
Eu fui violentada. Por diversas vezes em diferentes momentos da vida. Nenhuma delas foi em casa ou praticada por meu pai, irmão ou namorado, como acontece com a maioria das mulheres. Confesso a vocês que escrever aqui, publicamente, sobre o que passei não é simples. Porque comigo aconteceu o que acontece com a maioria massiva das mulheres. É difícil falar. Pior, é difícil se dar conta da violência. Então esse tipo de violência é como se não acontecesse. Ou como se não fosse violência.
Aconteceu no ano passado. Isso mesmo, já não era nenhuma mocinha indefesa. Havia voltado de Portugal depois de seis meses em intercâmbio e estava me sentindo fraca e muito sonolenta. Compartilhei com minha mãe que me indicou um infectologista, que sempre atendia minha família.
Antes que ele começasse as perguntas, eu mesma já fui falando do intercâmbio porque pensei que a mudança de rotina talvez estivesse interferindo nisso tudo. “Você tem namorado?”. Foi a primeira pergunta que fez. “Não, terminei há um ano”, respondi. “Hmmm... maravilha ein! Viajar assim solteira, transar com quem quiser! Você transou com muitas pessoas lá nesse intercâmbio?”
Fiquei absolutamente constrangida com a pergunta. Pensei que nem meu ginecologista, com quem consulto há dez anos, nunca me fez uma pergunta dessas. Mas, rapidamente, pensei que, como infectologista, essa pergunta fizesse parte do procedimento dele.
Durante o exame, pediu que eu deitasse. Estava de vestido. Quando me deitei, ele pegou no meu tornozelo e apertou. “Hmmm... canela grossa, ein?” e uma risadinha no fim. Fiquei constrangida mais uma vez. Mas depois pensei que não era nada demais. E ele continuou conversando sobre amenidades. Ao examinar minhas glândulas, no pescoço, começou a me fazer uma massagem e fez a pergunta estopim. “Você é dessas loucas por sexo ou como que é?”.
Nesse momento achei que aí, realmente, não tinha a ver com a consulta. “Não!”, respondi nervosa. Ele amenizou em seguida: porque tenho muitas pacientes com esse problema, vem se consultar e com problemas de saúde em decorrência disso e blá blá blá.
Sentamos à mesa, ele continuou contando casos de pacientes loucas por sexo e me pediu exames. Fui embora sem entender o que aconteceu. Horas mais tarde, deitada no colo da minha mãe enquanto assistíamos ao jornal, comecei a repensar no que aconteceu. Só então me dei conta: “mãe, acho que fui violentada”.
Minha mãe se indignou e quis voltar comigo lá. Eu mesma pensei em denunciar ao Conselho Regional de Medicina. Então pensei em um homem me recebendo, ouvindo minhas queixas e relativizando tudo que dissesse.
Minimizando o constrangimento pelo qual passei. Pensei nos homens que não acham que Monique foi estuprada por Daniel enquanto dormia, durante o BBB12. Pensei e deixei pra lá.
Deixei pra lá, como a maioria das mulheres deixam casos como esse e como vários outros cotidianos. Quando o namorado grita, xinga, manda tomar em todos os lugares e elas não conseguem reagir. Quando está passando por um grupo de homens e, necessariamente, ouvirá alguma piadinha, cantada ou observação sobre sua bunda. Isso pode ser um grupo de pedreiros na rua ou um grupo de advogados reunidos no Fórum. Você pode estar vestindo um vestido curto ou um terno mesmo.
Deixei pra lá como Nicole Bahls – integrante do Pânico - deixou depois de tentarem pegar em sua vagina sem algum consentimento quando menos esperava (veja aqui). Antes de fazer uma denúncia, uma mulher sempre pode ter muito a perder. Nicole poderia ter de deixar o emprego. A maioria das mulheres agredidas fisicamente em casa pelo companheiro, irmão ou pai não denuncia, pois depende financeiramente deles.
A verdade é que na maioria dos casos de violência ou agressão, qualquer nível que seja, a gente sempre deixa pra lá. Porque ninguém nunca nos disse que aquilo é de fato uma agressão ou violência. Mas ao assistirmos à cena em que Gerard tenta enfiar as mãos na vagina de Nicole em público e sentimos a mesma angústia, a gente entende que é sim uma violência. E você, leitora mulher que leu esse texto, talvez tenha compartilhado do constrangimento pelo qual passei. Para um homem, essas situações são brincadeiras. Para quem passa por isso ou compartilha disso, uma angústia.
Essas situações a que somos submetidas cotidianamente são relativizadas. Nosso constrangimento faz parte das sensações corriqueiras. Não entramos em um boteco de esquina para comprar uma coca-cola se só há homens no bar. Isso é normal. Assim como é normal ouvir cantadas baixas ao cruzar por homens nas ruas. Ou escutar xingamentos no trânsito. Ou deixar de usar um vestido ou saia mais curto ou decote se for tomar ônibus à noite.
Não importa se isso aconteceu comigo ou com Nicole Bahls. Não há diferença se a vítima é uma executiva de terno ou uma panicat na televisão. Não importa se você trabalha expondo seu corpo ou vendendo o que se tem na cabeça.
A violência acontece de qualquer maneira. E nunca há justificativas para que elas aconteçam. Até mesmo uma prostituta decide quem vai tocá-la e em que condições. Nada dá o direito de alguém tocar uma mulher sem consentimento ou constrangê-la ao ponto de que ela fique sem reação.
Não precisamos ser estupradas ou agredidas fisicamente para sermos violentadas. A violência acontece sempre por muito menos. O que está errado não é o vestido curto. Não é entrar no boteco de esquina cheio de homens. Não é o batom vermelho num terminal de ônibus à noite. O que está errado é sermos constrangidas. Termos os limites avançados sobre nosso corpo sem algum limite. Não temos de nos comportar. Vocês, homens, é quem devem mudar.
Por Nádia Junqueira
O que você pensa sobre as formas de violência que acontecem nas ações mais cotidianas contra as mulheres? Já passou ou presenciou algo parecido? Depois de ler o que a jornalista Nádia disse, ficou mais fácil de entender as várias formas de violência que existem? Dialogue com a gente!!
Diz aí..
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