Ensino Superior para jovens e adultos em situação de privação de liberdade

Matéria publicada no Jornal O Globo mais uma vez coloca em pauta a discussão sobre a educação para os jovens e adultos em situação de restrição e privação de liberdade. 

Traz para o debate que detentos estão (inclusive) fazendo faculdade.

Não é novidade para os estudiosos da área que vários são os apenados que gostariam (e tem condições) de realizar um curso superior, mas, infelizmente, por problemas diversos, tais como a não autorização das Varas de Execuções Penais para a saída de internos (inclusive em regime semi-aberto) para frequentar cursos nas universidades espalhadas pelo país. Muitos internos passam nos vestibulares, mas não conseguem autorização para frequentar...

Esse é um dos vários obstáculos enfrentados pelos apenados no país que desejam ter os seus direitos garantidos...

Segue a reportagem do Jornal O Globo...

Última fronteira do Ensino Superior - País tem 127 detentos fazendo faculdade; cearense frequenta aulas de tornozeleira eletrônica

Fonte: O Globo (RJ)

Cynthia Corvello, de 42 anos, está no 3º período do curso de História na Universidade Federal do Ceará (UFC). Dentro de sala, a única característica que a difere dos colegas é a tornozeleira eletrônica usada para o governo monitorar seus passos. Cynthia é a primeira interna do Instituto Penal Feminino (IPF) Desembargadora Auri Moura Costa, em Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza, a fazer faculdade fora do presídio. Presa em 2010, ela foi condenada a 25 anos por coautoria em um duplo homicídio. Em 2011, a detenta prestou o Exame Nacional do Ensino médio (Enem) e ingressou na UFC. Graças a uma autorização judicial, ela passou a deixar o instituto todas as manhãs para estudar e só retornar à noite.

Cursar uma graduação é privilégio de 127 internos do sistema carcerário, ou seja, 0,02% do total de 533.027 presos no país. Os dados são do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, relativos a outubro de 2012. Muitos deles estudam a distância, quando há essa opção, mas a maior parte consegue autorização judicial para fazer o curso presencial.

Faculdade em presídio
Cynthia sai de Aquiraz de ônibus, às 5h30min, rumo ao bairro de Benfica, em Fortaleza, onde funciona o curso de História da UFC, e volta no fim da tarde. Quando não está na faculdade, estuda na cela ou na biblioteca da unidade. Suas médias variam de 9 a 10.

- Quero ser Professora. Gostaria muito de dar aula no sistema penitenciário, aqui ou no presídio masculino. Se teve uma Cynthia aqui, pode ter uns "Cynthios" espalhados por aí também - brinca a detenta, observando que, na cadeia, o preso tem altos e baixos e que o Educador precisa estar preparado para lidar com isso.

No presídio em Aquiraz, 13 colegas de Cynthia fazem graduação de Filosofia dentro da instituição, graças a uma parceria entre a Faculdade Católica do Ceará e o governo estadual. Inaugurado há dois meses, o curso é o segundo ministrado no sistema prisional cearense. De 2006 a 2010, presos do Instituto Penal Professor Olavo Oliveira (IPPOO) II, em Itaitinga, estudaram Teologia. Mês que vem, a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) abre um ciclo básico para graduações de Ciências Humanas, como Direito e Ciências Sociais, na penitenciária Raymundo Asfora, em Campina Grande.

- Hoje, a gente senta para conversar não apenas sobre coisas lá de fora, como festas, mas sobre Sócrates e Platão. Tudo pra mim, atualmente, é ligado à Filosofia - comenta Heloísa da Guia Xavier, de 38 anos, interna do Auri Moura Costa, que foi condenada a 47 anos de detenção e já cumpriu cinco anos da sua pena.

Campi em penitenciárias são raros num país onde 88% dos detentos não terminaram a Escola e cujos governos falham em instalar Educação básica em todo seu sistema prisional. Este mês, estão completando dois anos desde a promulgação da Lei 12.433, que dá direito à redução de pena para internos que estudam ou trabalham. Conforme O GLOBO noticiou ontem, porém, das 1410 instituições penais no Brasil, 40% (565) não têm sequer sala de aula, segundo dados do Ministério da Justiça. Hoje, só um em cada dez detentos no país estudam.

Muitos presos que prestam vestibular têm desempenho ruim. Ano passado, 23.575 internos participaram do Enem para Pessoas Privadas de Liberdade (PPL), mas só 369 atingiram os 450 pontos exigidos para a certificação de conclusão do Ensino médio, segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação.

Bruno Augusto Sperli, Anderson Pereira e Ricardo Galdino são detentos, em regime fechado, de diferentes instituições do Rio e prestaram vestibular em 2012. Sperli passou para Pedagogia na UFF, Galdino foi aprovado em Física na Uerj e Nascimento conseguiu vaga em Pedagogia, também na Uerj. Mas eles perderam as vagas porque não tiveram autorização judicial para estudar fora das unidades acompanhados de escolta. E, no Rio, de acordo com a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap), os presídios não oferecem possibilidade de Ensino superior a distância.

Beira-mar estuda teologia
Um levantamento feito pelo GLOBO, que acionou órgãos das 27 unidades da federação, constatou que apenas sete estados dão a presos a opção de Ensino a distância: Paraná, Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Rondônia.

Em Catanduvas, no Paraná, um criminoso conhecido do Rio se vale de uma forma antiga de Ensino a distância para obter um diploma de Ensino superior. Desde o início deste ano, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, cursa Teologia por correspondência na Faculdade Teológica Batista do Paraná, após tirar 7,4 na redação do vestibular, cujo tema era extremismo religioso no Brasil.

Todo mês, o calouro Beira-Mar recebe na cela material impresso com textos teóricos e exercícios. Ao fim de cada tópico, o detento faz um teste na penitenciária, aplicado por um Professor da faculdade. Para obter o diploma, ele deve completar 174 créditos, equivalentes a 3.186 horas. Pela lei de remição penal, se Beira-Mar vestir a beca, terá 192 dias reduzidos da pena. Quem paga os estudos é a Igreja do Bacaxiri do Paraná. Foi o capelão da instituição que recrutou o Aluno, em visita à penitenciária.

- É um curso de Humanas. O que vai lhe adiantar um curso de Medicina se ele já vai sair da prisão idoso? Não temos bola de cristal para saber se vamos mudar a personalidade dele, mas essa é a intenção - afirma o diretor da faculdade, Jaziel Guerreiro Martins.

 Escolaridade baixa afeta demanda por curso técnico

De acordo com a Lei 12.433, o detento pode reduzir a pena trabalhando ou frequentando aulas do Ensino básico ou profissionalizante. Mas o número de presos fazendo Educação técnica é irrisório. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes a outubro de 2012, apenas 0,5% da população carcerária do Brasil têm esse privilégio, ou seja, 2.692 presos.

A explicação, entretanto, vai além da falta de oportunidades oferecidas. Segundo o Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Roberto da Silva, um dos motivos para a baixa quantidade de detentos em cursos técnicos é a Escolaridade da população carcerária:

- Quase metade dos presos no país tem apenas o Ensino fundamental incompleto, e isso atrapalha o aprendizado. O aproveitamento no curso técnico é menor quando a Escolaridade é baixa - diz ele.

Silva ficou dez anos encarcerado por furto e roubo, na década de 80. Depois, terminou a Escola, formou-se em Pedagogia, fez mestreado e doutorado. Hoje, é especialista em Educação do sistema carcerário. Ele critica a oferta de 90 mil vagas em cursos de capacitação por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Com a ajuda de entidades como o Senai, o projeto tem por objetivo criar 35 mil vagas este ano, podendo chegar a 42 mil.

Para o Professor da USP, grande parte das vagas do Pronatec ficarão ociosas.

- E tem a questão dos cursos oferecidos. O caso clássico é a confecção de bolas de futebol: de que serve especializar o detento numa área restrita. Ele quase não vai ter oportunidade de trabalhar depois.

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), deputado Marcelo Freixo (PSOL), incentivar o estudo retoma uma meta do sistema prisional, que é ressocializar o detento. Segundo o parlamentar, que deu aulas no complexo de Bangu nos anos 80 e 90, a Educação é o melhor instrumento para reintegrar o preso.

- As prisões no Brasil só cumprem o papel de afastar o preso do mundo, mas não tratam de buscar uma solução para ressocializá-lo. Com Educação, ele vai ter opção de vida aqui fora e pode não voltar ao crime - analisa Freixo. 

 

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