DOCUMENTÁRIO "Dandara: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito"

Por Daniel Drumond Ribeirord.drumond@gmail.com

“Ô Dandara, ô Dandara ó, a nossa luta aqui vale mais que ouro em pó”

Situada na região da Pampulha, na zona norte de Belo Horizonte, a ocupação Dandara é o maior conflito social de moradia de Minas Gerais e um dos mais complexos processos dentro do Tribunal de Justiça do Estado. O documentário Dandara: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito (idem, 2013), dirigido pelo argentino Carlos Pronzato, conta, por meio de 65 minutos de depoimentos de moradores, apoiadores, militantes e envolvidos, um pouco da história dessa ocupação, que surgiu da luta pela moradia e contra o capital especulativo.

Dandara surgiu em abril de 2009. Às 4h da manhã de uma quinta-feira santa, o terreno de 40 hectares começou a ser ocupado por meio da luta, do planejamento e da organização de cerca de 150 famílias que montaram um acampamento de barracas de lona com a própria força de trabalho. A união com que a população local trava a luta para a construção de uma sociedade que caiba todas e todos mostra que a ocupação é, além de um forte grito por dignidade, um exemplo de solidariedade. Dandara, portanto, tenta desenvolver uma alternativa ante a sociedade atual, capitalista e excludente, na qual o povo preto e pobre é cada vez mais subserviente das leis do mercado.

E foi no dia 12 de julho, no 4º mês de Dandara, que o restante do terreno foi ocupado: simulando uma procissão religiosa, as mais de mil famílias que na comunidade já residiam conseguiram sorrateiramente driblar a Polícia Militar, que repreendia os moradores desde o primeiro dia. Frei Gilvander liderava os nove subgrupos, divididos por diferentes cores de pulseiras, que, ao som de cantigas religiosas e gritos de luta, foram se assentando nos lotes de 128m² previamente demarcados.

O planejamento feito para a comunidade impressiona: o projeto urbanístico, elaborado por estudantes e profissionais de arquitetura e geografia com a participação dos moradores, foi exposto internacionalmente e bastante premiado. O trabalho respeita as determinações do Plano Diretor do município de Belo Horizonte, o que torna possível a regularização da comunidade em um bairro da capital mineira, caso as instâncias municipal, estadual e federal do poder público concordem.

Mas o terreno, avaliado em cerca de 80 milhões de reais, tem sua posse reclamada pela construtora Modelo, que sequer pagou por ele. Ela o adquiriu em 1997 por meio de um contrato de permuta, no qual alegava que pagaria por unidades construídas. A construtora, porém, jamais construiu no local e tem uma dívida de mais de 2,5 milhões de reais em IPTU não pago à prefeitura de BH. Antes de Dandara, não havia naquela terra a função social garantida pela lei federal do Estatuto das Cidades: o terreno estava abandonado e servia apenas para a especulação imobiliária.

A situação explicita como anda a situação fundiária de Belo Horizonte: segundo o relatório de 2012 do programa ONU-Habitat, ela é a 4ª cidade com os piores índices de distribuição de renda da América Latina. O déficit habitacional é enorme, ainda que haja uma quantidade impressionante de moradias desocupadas.

As ruas de Dandara têm nomes de lutadores populares, como Carlos Marighella, Che Guevara e Paulo Freire. Alguns outros nomes também chamam atenção, como Maria Diarista e Pedro Pedreiro. Ambos são, além de um retrato do ofício de boa parte dos moradores de Dandara, uma forma de ilustrar a luta diária do povo pobre.

As histórias mostradas no documentário formam um mosaico de luta muito forte. É um filme emocionante, que se torna mais envolvente a cada fala de morador, militante ou apoiador. Unido, o povo de Dandara realizou cinco grandes marchas até o centro de BH, que fica a 25km da comunidade, para conscientizar a população belorizontina e iniciar um processo de negociação com o governo. Segundo o advogado das Brigadas Populares Joviano Mayer, esse processo só teve início após a ocupação da sede da prefeitura de Belo Horizonte, que aconteceu no final de julho deste ano, em um momento posterior às gravações.

Dandara se constrói no entorno de três eixos. São eles as organizações de base, a luta política e a rede de solidariedade. A presença feminina na ocupação é vital, pois, em boa parte das famílias, as mulheres foram as responsáveis por ocupar o espaço na comunidade, em contraste aos maridos que resistiam à mudança. Negra e mulher, a ocupação não poderia resgatar outra personalidade: Dandara foi uma das lideranças femininas que lutaram, ao lado de Zumbi, contra a escravidão no século XVII. Após a destruição do quilombo dos Palmares, Dandara preferiu tirar a própria vida a voltar à condição de escrava. De forma semelhante à resistência da guerreira, o povo da ocupação luta para não perder o que construiu, cantando:

“Daqui não saio, daqui ninguém me tiraDaqui não saio, daqui ninguém me tiraOnde é que eu vou morar?Eu não tenho paciência de esperarAinda mais com sete filhos, onde é que eu vou morar?”

Dandara é. Dandara é de luta.

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