Há algo de muito irônico quando um dos maiores fenômenos atuais do pop é... uma banda punk. De mulheres. E da Rússia. Maria Alyokhina, de 24 anos; Nadezhda Tolokonnikova, de 22; e Yekaterina Samutsevich, de 29, do coletivo feminista Pussy Riot, estão presas desde março, acusadas de vandalismo motivado por ódio religioso, por terem entrado mascaradas, na Catedral do Cristo Salvador, em Moscou, e tocado uma "oração punk", que pedia à Santa Virgem que as livrassem do presidente reeleito Vladimir Putin. O caso (que esta semana provocou até um protesto da cantora Madonna - ela mostrou a inscrição "Pussy Riot" nas costas durante seu show em Moscou) é só mais um indício de um renascimento do punk em seus moldes originais: mal-educado, político, ruidoso, anticomercial, faça-você-mesmo, que vem acontecendo entre garotos por todo do planeta.
Decisivos formadores de opinião quando o tema é o futuro criativo do rock, a revista "Spin" e o site "Pitchork.com", dos Estados Unidos, recentemente começaram a usar um termo que parecia condenado ao esquecimento: hardcore. Uma variação mais acelerada e violenta do punk, surgida nos início dos anos 1980 e consagrada na Califórnia, pelas bandas Black Flag e Dead Kennedys, e na capital, Washington, por nomes como Minor Threat e Bad Brains. Eles são os modelos de artistas novos, celebrados em reportagens e resenhas, como o Trash Talk (californianos, que lançarão seu novo álbum em outubro pelo selo do desbocado coletivo de rap Odd Future), o Off! (do cantor Keith Morris, veterano do Black Flag) e Cerebral Ballzy. Todos adeptos de uma estética minimalista, precária mesmo, no som e na arte dos seus discos.
Esses punks do tempo em que a energia e a mensagem importavam mais do que a técnica e a qualidade de gravação também inspiraram algumas bandas brasileiras, cujos integrantes ainda nem eram nascidos quando se deu a era de ouro do hardcore. Em Recife, quem representa essa vertente é o grupo Eu o Declaro Meu Inimigo, que acaba de estrear em álbum com "Música pode ser perigosa". Disco independente, lançado em poucas cópias de CDR e liberado para download, ele faz menção ao Black Flag na música, no logotipo e na arte preto e branco da capa.
- A gente chegou a eles por intermédio de bandas brasileiras, como o Cólera e os Ratos de Porão - conta o vocalista Diego Soriano, de 24 anos. - E foi mais por causa das letras, que falam de política. Não de forma partidária, mas no nível do cidadão político. Hoje, acho que o Off! continua essa tradição, levando adiante a visão original que o Keith Morris tinha para o Black Flag.
Guitarrista da banda Bravo, do Mato Grosso do Sul, que acaba de lançar o disco (igualmente independente) "Até que um dia", Guilherme Teló veste a velha camisa do Minor Threat. E considera bandas como Trash Talk e Ceremony (contratada pelo selo indie Matador e apontada pelo crítico David Bevan, da revista Spin como "uma das jovens bandas de hardcore que estão alargando as fronteiras") como representantes de algo como um "hipstercore". Ou seja: para um público que não entende de hardcore e quer posar de moderno.
- É natural. Esse gênero nunca ia ser absorvido como ele realmente é - diz Teló, de 22 anos, que, sim, é primo de primeiro grau do sertanejo Michel.
Junto com Bravo e Eu o Declaro Meu Inimigo, uma nova geração de bandas, isoladas geograficamente mas unidas pela internet, dá as caras revivendo as glórias e a rudeza do hardcore. Na linha de frente, estão o Skate Pirata (de Fortaleza) e o Cidade Cemitério (de Brasília), que acabaram de lançar um álbum conjunto, "Rolê pagão". Um orgulho para Clemente Nascimento, do pioneiro grupo punk Inocentes, que viu de perto o impacto do hardcore na cena paulistana do começo dos anos 1980.
- Acho que é aquela coisa cíclica, a molecada ia acabar redescobrindo essa música que é excitante e verdadeira, ainda mais para quem é jovem - conta o músico. - As próprias bandas que estão na grande mídia acabam conduzindo aquela minoria interessada, que tem cérebro, a esse hardcore. Ele nunca será tão popular quanto o Green Day, mas acredito que ele ainda pode ocupar um espaço muito legal.
Enquanto isso, o interesse pelo passado do punk não para de crescer. Os Inocentes acabam de ter seu compacto de 1983, "Miséria e fome", reeditado em vinil. E no dia 24 de setembro, chegará às lojas a reedição comemorativa dos 35 anos do clássico álbum dos Sex Pistols "Never mind the bullocks". Já o presente, esse é bem punk. Ontem, no tribunal, Nadezhda Tolokonnikova, do Pussy Riot, disse ser vítima de "um processo stalinista". O veredito será anunciado dia 17, e o trio pode pegar até três anos de prisão, por acusações que incluem incitação ao ódio religioso.
- Nos anos 1980, estava bem claro quem era o inimigo. Hoje, são tantas as maneiras de se encarar o mundo que ficou difícil identificar - diz Clemente.
Comments
E Viva o hardcore!
Para quem quiser se aprofundar nas raízes do movimento punk/hardcore, há este ótimo vídeo sobre o Crass, uma potente banda inglesa, repleta de boas referências - detalhe: eles achavam o The Clash farofa:
https://www.youtube.com/watch?v=h_DIV_iXKus