UM TAPINHA NÃO DÓI - REPORTAGEM ESPECIAL SOBRE A REPRESSÃO À MACONHA NA AMÉRICA LATINA

Por Lucas Schuenck

 

Beck, base, tora, erva, chá, ganja, baseado, mary jane. Estes são apenas alguns dos nomes do entorpecente de fórmula química Tetraidrocanabinol, mais conhecido como maconha. O primeiro registro da substância no Brasil data do ano de 1549, quando segundo o Ministério das Relações Exteriores, negros escravos trouxeram sementes de cânhamo em bonecas de pano amarradas nas pontas das tangas, para serem usadas em rituais do Candomblé, sendo assim batizada de Fumo D’Angola.

O uso era livre até o século XIX, quando a Coroa Portuguesa chegou ao Brasil, fugindo do perigo das tropas de Napoleão. Em 1809 foi criada no Brasil a Guarda Real de Polícia, que tinha como um de seus deveres a repressão de festas populares da época, que contavam com música afro-brasileira, cachaça e maconha. No ano de 1830, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a editar uma lei que tornasse crime o uso e o comércio do então “pito de pango”. Em 1976, entrou em vigor a lei 6368 que distinguia o traficante do usuário, representados respectivamente pelos artigos 12 e 16. A Lei de número 11343, sancionada pelo Presidente Luís Inácio “Lula” da Silva em 2006, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas(Sisnad) e, entre outras medidas, reiterou o fim da pena de prisão para usuários de substâncias ilegais.

O Sisnad é hoje o sistema legal que tem a finalidade de articular, integrar e organizar atividades relacionadas com a prevenção do uso indevido e a repressão da produção não autorizada e tráfico de drogas. Também traça como meta a reinserção social de usuários e dependentes de drogas. A Lei ainda apresenta em seu primeiro capítulo, no 2º parágrafo do quinto artigo, o objetivo de “promover a construção e a socialização do conhecimento sobre drogas no país”.

Política de Drogas na América Latina e no Brasil

Para Mari Nougier, pesquisadora sênior do Consórcio Internacional sobre Política de Drogas(IDPC), a América Latina têm tido avanços notáveis nos debates da reforma da política de drogas. “Por décadas, os governos latino-americanos seguiram cegamente a política estadunidense, apelidada de ‘Guerra contra as drogas’. Existem dois fatores principais de mudança deste contexto: o crescimento dos governos de esquerda, que contestam os padrões unilaterais e intervencionismo americanos; e o crescente fracasso do modelo proibicionista até então[...] A nível nacional, muitos países tem implementado ou estão debatendo reformas na política de drogas.

A Bolívia foi o primeiro país a legalizar o uso da folha de coca em seu território, e o Uruguai está caminhando para se tornar o primeiro país do mundo com o mercado da maconha legal e regularizado”. Para ela, a descriminalização da posse de pequenas quantidades de drogas é uma das mais discutidas reformas. Nesse âmbito, o Brasil foi pioneiro em executá-la, embora “parcialmente”, com a lei aprovada em 2006, mas a mesma se mostrou uma faca de dois gumes. “A lei de número 11343 não diferencia claramente o traficante e o usuário. Uma das consequências dela foi o grande crescimento das prisões sobre a alegação de “traficantes de pequeno porte”(com quantidades pequenas, semelhantes a de usuários), o que causou consequências desastrosas ao sistema penitenciário brasileiro.[...] Ao invés de se mover para uma descriminalização completa de usuários e qualificar a diferença entre a pessoa que consome e o traficante de pequeno porte, o Congresso Brasileiro ainda prefere uma legislação que aumenta as fianças e institucionaliza a internação compulsória. O que na verdade é um grande retrocesso de uma política de drogas mais efetiva e humana no país”.

Para Rupert George, assessor de imprensa do Release(centro nacional de drogas e legislação de drogas do Reino Unido), a América Latina é, no mundo, a região com o diálogo sobre a política de drogas mais progressiva, superando a América do Norte e a Europa. Entretanto, para ele, o Brasil está atrás de seus vizinhos nesse processo. “As recentes mudanças na lei do tratamento de usuários de substâncias ilícitas(internação involuntária) são um retrocesso. A “Guerra as Drogas” nunca deu certo em nenhum lugar do mundo; e não dará no Brasil”.

Guerra às Drogas

Em 1971, o então presidente estadunidense Robert Nixon, declarou o início do combate do “inimigo público número um do país” – as drogas. Previsto para durar 5 anos, o combate se perpetuou pelas seguintes administrações e resultou em, por exemplo, intervenções armadas na Colômbia, no México e no Panamá, considerados como países de origem das drogas no solo americano.

Com grande poder de influência no mundo, muitos países aderiram à postura agressiva de combate as drogas não legalizadas. Como já dito anteriormente, nações da América Latina adotaram esta postura.

Apesar de mais de quatro décadas de “guerra” e estimativa de 40 milhões de presos por narcotráfico ou posse de psicotrópicos, o número de usuários ilegais de drogas aumentou e rompeu a barreira dos 20 milhões nos EUA.

Em julho de 2011, a Comissão Global de Política sobre Drogas das Nações Unidas, declarou que a guerra global contra o narcotráfico “falhou, com consequências devastadoras para os indivíduos e sociedades de todo o mundo”.

As mudanças no Sistema Nacional de Política sobre Drogas

Um projeto de lei aprovado em maio de 2013 trouxe novidades ao Sisnad. Com semelhanças a já conhecida “Guerra as Drogas”, o PL, redigido pelo deputado Osmar Terra, aumentou a pena de reclusão para o tráfico, de cinco para oito anos, e passou a prever a internação compulsória(sem consentimento do indivíduo) para dependentes químicos.

Defensores das mudanças argumentam que este rigor aprimorado diminuirá a circulação das substâncias ilícitas e, consequentemente, o número de usuários.

Antes, uma pessoa só poderia ser internada por determinação da Justiça, caso fosse comprovado que a mesma apresentava algum risco à sociedade. Após este projeto, a participação de um juiz é dispensada, sendo possível a internação com a iniciativa da família tendo em posse um laudo médico.

Uruguai e a Legalização

Em agosto de 2013, um projeto de lei, existente desde junho de 2012 foi aprovado pela Câmara dos Deputados e enviado ao Senado. Se aprovado, o país se tornará o primeiro Estado que poderá assumir o controle de todo processo de produção e venda da maconha.

“Com a regulação da cannabis, o governo entende que deixa de expor o usuário a perigos que ocorrem quando a mesma é comprada no ‘mercado negro’, além de fazer com que o dinheiro gerado por esse comércio possa ser investido na produção de substâncias mais inofensivas ao organismo. Esta proposta recebeu apoio significativo de uma plataforma civil chamada Regulação Responsável, que colaborou com campanhas nas redes sociais”, afirma Mari Nougier.

Para Rupert George, o Uruguai servirá de modelo para as mudanças que ainda estão por vir na América Latina. “A melhoria nos serviços públicos e a redução da violência, que virão pela legalização do comércio e consumo da maconha, terão um impacto socioeconômico positivo no crescimento do país. O número de pessoas, por exemplo, que morrem por violência ligada ao tráfico de drogas no Brasil é grande. Creio que todos gostariam da diminuição dessas estatísticas”, declarou.

Cultura Verde e a Marcha da Maconha

O Cultura Verde é um de cerca de 40 coletivos antiproibicionista existentes no Brasil. Tendo seu surgimento em debates e reflexões nas universidades do Rio de Janeiro, apresenta o argumento que os investimentos na política de “combate ao tráfico” teriam melhor aproveitamento na saúde e na educação, a partir de uma nova política de drogas; menos repressiva e mais humana. O coletivo é também responsável pela organização da Marcha da Maconha na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, e participa ativamente nas edições da capital e do município de São Gonçalo, no mesmo estado.

Para o ativista Andrew Costa, a necessidade de organização de coletivos do gênero surge a partir da pauta única da legalização da maconha existente na marcha e, também, da necessidade de aprofundar a reflexão sobre a política vigente de substâncias ilícitas. “A Marcha faz parte de um movimento global que se chama Marcha Global da Maconha(Global Maryjuana March), que é um movimento que preza pela organização autônoma das cidades, apenas seguindo o princípio de realizarem atos de rua que discutam a proibição das drogas.”

As duas maiores marchas do país, hoje, são as do Rio de Janeiro e São Paulo, que reúnem cerca de 15 mil pessoas anualmente, no mês de maio. A marcha no Brasil também surgiu nas universidades de cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Fortaleza, e hoje já acontece em mais de 30 cidades pelo país e mais 100 pelo mundo.

No ano de 2012, durante a Cúpula dos Povos, ocorreu o encontro nacional dos coletivos antiproibicionistas brasileiros. Este, resultou na criação da Rede Nacional de Coletivos e Ativistas pela Legalização da Maconha(RENCA), que surgiu para ser uma rede de socialização de experiências de práticas locais dos grupos.

Além dessas formas de organização, foi criada em 2012 a Frente Nacional dos Direitos Humanos, que reúne todos os movimentos sociais que defendem uma nova política de drogas. Em sua carta de apresentação, a FNDDH diz “defender uma Política de Segurança Pública baseada na garantia dos direitos humanos e sociais e não na repressão policial, ações higienizadoras e criminalizadoras da pobreza. Posicionamos-nos contra a atual política de drogas e assumimos os princípios da Luta Antimanicomial e da Redução de Danos no acolhimento e no tratamento de usuários abusivos de drogas”.

Maconha no divã

O psicólogo Fábio Borges, pesquisador na área de prevenção a dependência química, trabalha com consultas clínicas voltadas para usuários de drogas há 14 anos. Além disso, integra uma rede de trabalho chamada Drogas, Aids e Direitos Humanos, que tem como uma de suas pautas, uma reforma na política de drogas brasileira.

- Você se recorda de algum caso clínico de um usuário realmente prejudicado pela maconha?

Sim. Um deles já era usuário há mais de 10 anos. Começou com 16 anos e, na época, me procurou com 28 anos. Naquele momento ele não tinha noção do problema. Ele tinha dificuldade de se inserir em um ambiente de trabalho e reclamava sobre o tempo que ele levou para terminar a faculdade. As questões levantadas por ele eram de insatisfação e de não inserção social, somadas a complicações em relacionamentos afetivos. Ao longo das sessões ficou claro que o uso dele era diário e de cerca de 5 cigarros por dia que, segundo ele, não eram pequenos. Com isso eu comecei a identificar alguns pontos em comum com outros usuários abusivos da maconha: dificuldade de transição para o mundo adulto e de estabelecer vínculos afetivos mais duradouros. Ele foi me dando várias informações que deixavam claro que a maconha estava interferindo no comportamento dele. Eu fui esclarecendo esses pontos pra ele, porque ele não tinha chegado até mim pelo problema da maconha, mas sim pelas dificuldades que estava tendo em sua vida. Eu levei até ele informações que fizeram com que ele percebesse que o uso dele era abusivo, porque até então, ele pensava ter tudo sob controle, não percebia a influência direta que isto fazia na vida dele.

- Você consegue traçar características em comum de pacientes usuários?

O ponto em comum que eu identifiquei de um uso abusivo de maconha é o não amadurecimento da juventude para a fase adulta, a criação de argumentos muito bem elaborados para o uso a qualquer tempo vago e um discurso exacerbado de desapego das coisas materiais. Esses são pontos em comum de pacientes que eu considero de um uso abusivo. Outros pacientes que fazem o uso social não apresentam essas características.

- O uso social pode se tornar um uso abusivo?

Falar em dependência química em relação a maconha é muito arriscado e a maioria dos pesquisadores defende que esta (dependência) não existe. Não é como o álcool que é facilmente identificado com a síndrome de abstinência e outros fatores fisiológicos de dependência. Na questão da maconha a dependência é psicológica. É mais sério? É menos sério? Eu como psicólogo considero seríssima. Principalmente pela falta de noção característica dos usuários de que está havendo alguma coisa nociva que esteja acontecendo com eles. Um sujeito que com 40 anos não consegue agir como adulto e ainda possui pensamentos e posturas adolescentes, deve considerar os danos tão graves quanto a dependência e o prejuízo físico de outras drogas.

- Você concorda com a sabedoria popular de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas?

Não acredito que isto seja uma condição absoluta. Varia de caso a caso. Uma pessoa pode despertar uma curiosidade e perceber que aquela não é a droga que ele se identifica. Ela pode começar pela maconha e pelo convívio social surge a oportunidade da cocaína, que é uma droga completamente diferente em termos de satisfação, e se identificar perfeitamente pelos efeitos provocados por ela. Nesse caso foi sim a porta de entrada, porque ele estava na busca de um estado alterado de consciência. Ao meu ver, o álcool faz mais frequentemente este papel. É no álcool que se percebe, na maioria das vezes, pela primeira vez, o prazer deste estado alterado.

- A maconha é mais ou menos prejudicial que outras drogas lícitas, como o tabaco e o álcool, por exemplo?

Em questão de prejuízo físico, comparado com o álcool, o tabaco e outras drogas legais, a maconha fica bem atrás. Ela tem, a curto prazo, danos insignificantes. Problemas notáveis apenas aparecem após 15 ou 20 anos de uso contínuo de cerca de 4 gramas diárias. Após esses anos há a possibilidade de alterações no humor, aumento do nível de irritabilidade e falhas de memória. Já o prejuízo psíquico-emocional é grande. Ela(maconha) prejudica a inserção social e pode causar possível improdutividade perante o trabalho e outras atividades de uma maneira geral. Um tapinha não dói? Como qualquer outra substância química, se usada em excesso, pode doer – e muito.

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