Madame Bovary é considerada a obra que introduz o Realismo na França. Publicada em 1857, ela causou um choque na sociedade francesa, porque ousava por meio da figura despudorada e romântica de Emma Bovary questionar os costumes morais e religiosos da França burguesa. Flaubert foi processado e julgado e, ainda bem, absolvido, sua obra não teve a mesma sorte, pelo menos por muito tempo. No Tribunal, Flaubert pronunciaria a tão famosa frase: Emma Bovary c’est moi, não sei se para defender sua heroína, ou se para mostrar como se sentia, sendo julgado por seus contemporâneos como Emma foi. Para o público sedento de vingança, sacrificar Emma Bovary parece não ter suficiente, era preciso sacrificar seu criador também.
Assim, durante muito tempo, a pobre sonhadora foi vista como um mau exemplo, para as leitoras. Ainda que, na esteira de Flaubert, tantos outros escritores tenham construído suas heroínas incompreendidas, como a Luísa de O Primo Basílio. Nenhuma construída com tanta profundidade psicológica quanto a de Flaubert, diga-se de passagem.
Eu li a trágica história de Emma Bovary aos 17 anos e nunca mais a esqueci: Seus sonhos, seus sofrimentos, seus desejos, suas maldades e finalmente seu suplício. Flaubert estava errado, ele não detém o direito exclusivo de ser Emma Bovary. Este direito pertence a todos nós. Todos nós que amamos o novo, que nos insurgimos contra os hábitos, as rotinas, os vícios transvestidos em regras do bom viver.
Italo Calvino, em Por que ler os clássicos nós diz que nunca lemos o mesmo livro duas vezes, quase numa paródia a Heródoto, ele afirma que pela segunda vez o livro não é o mesmo, porque não somos mais os mesmos. Ele diz também que só devemos ler certos livros em uma certa idade para de fato compreendê-los, eu diria que é para nos compreendermos também.
Aos 17 anos eu não entendia Emma completamente, eu me penalizava de seus sofrimentos, mas nunca os tinha sentido. A dúvida e o remorso que a corroíam me eram estranhos.
Hoje eu sei o que Emma sentia: sozinha no campo, incompreendida por Charles, incompreendida por todos amantes. Emma não se matou para fugir das dívidas e dos escândalos; se matou para fugir do vazio. Lembrando o cronista Otto Lara Rezende ao falar de outro incompreendido Ernest Hemigway: Emma fugiu enquanto pode, resistiu à morte em cada amor, digo amor, e não amante, porque ela os amava.
Emma não era fútil, era sensível. Em cada braço, tentando se esconder do desespero, em cada nova paixão buscando um motivo para viver e depois a desilusão, o abandono. Eu diria até que Emma era niilista, não uma niilista ao modo de Nietzsche, mas como Schopenhauer, como Leopardi, românticos como ela.
Emma mostrou com sua vida que o bem o mal, o amor e o desamor tudo transita por uma linha tênue. Os valores sociais, religiosos e morais sucumbem à vontade de Emma. Talvez por isso ela foi tão odiada, talvez por isso ela ainda seja tão incompreendida. Na construção social que uniformiza, que diz o que é certo e errado, Emma Bovary não se encaixa. Ela é inconstância diante de uma vida que se arrasta e pede calma.
Toda esta minha reflexão niilista, libertária e passional sobre Emma Bovary, surgiu a partir do filme: Pecados íntimos (2006). Ao assisti-lo, foi impossível não ligar os destinos românticos e trágicos dos personagens, vivendo numa sociedade que não os compreende, à personagem de Flaubert. A ligação com livro é patente, pois no próprio filme há uma cena em que se discute a vida de Emma Bovary.
Link do filme no youtube:http://youtu.be/oUw84zZJTBY
Comments
O personagem de Emma Bovary
É muito curioso este fato de que quando um personagem é tão bem construído, como no caso de Emma Bovary, não enxergamos mais nele algo de ficção, mas sim alguém de carne e osso.
Bacana a dica do livro e do filme, Cleia.