As políticas educacionais e o combate à uma nova barbárie

 

 

Quando nos distanciamos da luta contra o racismo e a racialização, aproximamo-nos de um novo Auschwitz ou de regimes de escravidão

 

"Reconheçamos e digamos aos nossos filhos que enquanto ficar um só escravo na terra, a servidão desse homem será um insulto permanente feito à raça humana inteira." (Victor Schoelcher, 1848)

 

Uma das preocupações explícitas que encontramos na Declaração da emblemática Conferência de Durban, de 2001, a favor dos direitos humanos, sobretudo no tocante a questão racial, versa sobre o seguinte: “Relembramos que o Holocausto jamais deverá ser esquecido.”

Nesse sentido, no mês eleito para se pensar a questão da consciência negra, neste texto, resolvemos abordar esse tema, tratando da luta pelo reconhecimento e valorização da diversidade étnico-racial e do combate à escravidão, sobretudo dentro do campo das políticas educacionais. Visto que estas também são formas de se contribuir para evitar uma nova barbárie.

A educadora Nilma Lino Gomes observa que “Qualquer análise das políticas educacionais no país não pode negligenciar os marcos históricos, políticos, econômicos e a relação com o Estado e a sociedade civil nos quais essas se inserem.” A título de exemplo, analisaremos aqui alguns eventos ou documentos, sobretudo de natureza política, que, de alguma forma, estão associados à educação das relações étnico-raciais e o combate à escravidão.

Carta de Durban e a Educação

Um desses eventos que são considerados um marco, nesta questão racial, apontado pela educadora Nilma Lino Gomes, foi a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em setembro de 2001, em Durban, na África do Sul.  

Da conferência de Durban à implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, (leis que explicitaremos a seguir) um longo processo de luta pelo direito à igualdade e à equidade, na educação das relações étnico-raciais, foi percorrido pelos movimentos sociais aqui no Brasil, principalmente pelo movimento negro.

Os educadores Paulo Vinicius Baptista da Silva e Débora Cristina de Araújo, da UFPR, observam que tanto as proposições preparatórias assim como as advindas da própria Conferência de Durban, de 2001, foram fundamentais para a aprovação da Lei 10.639/03. Como exemplo de proposição presente na Declaração e Programa de Ação adotados na Conferência, da qual o Brasil foi signatário, podemos citar:

99. Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, equidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação.

Ainda na Carta de Durban, na sessão de Educação em Direitos Humanos, também encontramos uma grande indução aos Estados adotarem políticas educacionais que abordem a temática racial:

126. Incentiva a todos os Estados, em cooperação com as Nações Unidas, UNESCO e outras organizações internacionais competentes, a iniciarem e desenvolverem programas culturais e educacionais que visem a combater o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, com o intuito de assegurar o respeito pela dignidade e pelo valor de todos os seres humanos e para aumentar o entendimento mútuo entre todas as culturas e civilizações.

Políticas educacionais estimuladas por Durban

Portanto, como dissemos acima, essas orientações na Carta de Durban, somadas é claro, com a pressão dos movimentos sociais internos, propiciaram a criação da lei nº 10.639 de 2003. Essa lei, junto com o Parecer CNE/CP 03/2004 e a Resolução CNE/CP 01/2004, ambos aprovados pelo Conselho Nacional de Educação, regulamentaram e instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Em 2008, o texto da lei nº 10.639 foi alterado pela nova lei nº 11.645, a qual passou a determinar o seguinte, em seu artigo 26-A: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.”

Em seu parágrafo 1º, a lei estabelece que:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (PRESIDÊNCIA, 2014)

E por fim, no seu parágrafo 2º, ela determina que: “Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.”

Em 2012 foi aprovada as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, tendo entre seus objetivos:

[...] zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja garantido às comunidades indígenas com qualidade social e pertinência pedagógica, cultural, linguística, ambiental e territorial, respeitando as lógicas, saberes e perspectivas dos próprios povos indígenas.

Desta forma, buscando “a promoção da justiça social e a defesa dos direitos dos povos indígenas na construção de projetos escolares diferenciados, que contribuam para a afirmação de suas identidades étnicas e sua inserção digna na sociedade brasileira.” (BRASIL, 2014b)

No mesmo ano também, em 2012, foi aprovada as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, definindo entre seus objetivos, que a sua educação alimenta-se “de memória coletiva, línguas reminiscentes, marcos civilizatórios, práticas culturais, acervos e repertórios orais, festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país.” (BRASIL, 2014c)

Essas são, portanto, algumas políticas educacionais que provavelmente devem ter tido influência da Conferência de Durban, direta ou indiretamente.

Carta de Durban e o combate à escravidão
Outra questão de direitos humanos tratada na Carta de Durban, e que insta os Estados a tomarem medidas corretivas, diz respeito à necessidade de se combater a escravidão:

28. Condenamos veementemente o fato de que a escravidão e as práticas análogas à escravidão ainda existam hoje em partes do mundo e instamos os Estados a tomarem medidas imediatas, em caráter prioritário, para por um fim a tais práticas as quais constituem violações flagrantes dos direitos humanos; 69. Insta os Estados a decretarem e implementarem leis para reprimir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças e o tráfico de migrantes, levando em conta, práticas que ameaçam vidas humanas ou provoquem diversas formas de escravidão e exploração, tais como dependência por dívidas, escravidão, exploração sexual ou exploração do trabalho.

Para se ter uma ideia do quanto a escravidão ainda persiste no mundo atual, segundo a ONG Walk Free Foundation, ela atinge 35,8 milhões de pessoas em 167 países, e no Brasil, temos ainda 155.300 pessoas em condições degradantes de trabalho.

Racialização
E uma das causas ou formas mais comuns utilizadas para se escravizar um grupo social é a prática que se denomina de racialização. Silva e Araújo observam que:

O processo denominado racialização implica que, ao ser tratado como inferior, o grupo social racializado passa a ter o acesso a bens e materiais simbólicos privados ou dificultados fazendo com que raça, mesmo não existindo como diferença biológica, exista do ponto de vista social.

Portanto, faz-se necessário que o educador esclareça o seu educando acerca da racialização, pois ela evidencia o quanto monstruosa é a escravidão, essa violência terrível que se comete contra a dignidade humana. Desta forma, podemos perceber que as políticas educacionais voltadas para o reconhecimento e valorização da diversidade étnico-racial, resultam, de alguma forma, também no combate à estupidez da escravidão.

Indicadores de qualidade de ensino e a Educação (Racial e em DH)
Por outro lado, como poderíamos saber se essas determinações presentes, tanto na Carta de Durban, como nas diretrizes nacionais da educação básica, sobretudo acerca da Educação das Relações Étnico-Raciais e em Direitos Humanos, estão se realizando a contento?

Romualdo Portela de Oliveira e Gilda Cardoso de Araújo referindo-se ao direito constitucional acerca do padrão de qualidade de ensino, fala-nos da necessidade de se criar indicadores dessa natureza, como nova dimensão do direito à educação. Observam que o desafio que se apresenta atualmente consiste em “traduzir o ‘padrão de qualidade’ num conjunto de indicadores passível de exigência judicial.”

Partindo das ideias que nos aponta Adorno acerca da educação, e da necessidade que nos fala Oliveira e Araújo, de se criar indicadores de qualidade de ensino, entendemos que esses indicadores, em termos de educação das relações étnico-raciais e em direitos humanos, terão que obrigatoriamente demonstrar se estão ocorrendo, ou não, práticas pedagógicas, tais como:

- o combate ao racismo, à ideologia do embranquecimento, ao mito da democracia racial, à naturalização das desigualdades raciais, à ideologia da superioridade racial, à racialização, à xenofobia, ao nacionalismo ufanista, ao etnocentrismo, aos preconceitos em geral, à discriminação, ao bulling;
- o reconhecimento que a escravidão e o tráfico negreiro constituem um crime contra a humanidade;
- a valorização e o reconhecimento das diferenças e da diversidade étnico-racial e cultural, da alteridade, das liberdades individuais;
- o respeito às pessoas com necessidades especiais, aos direitos das minorias;

- que lutem contra a exploração do trabalho infantil e busquem promover o respeito aos direitos dos trabalhadores migrantes;

- que busquem promover a laicidade do Estado e a democracia na educação;
- que tenham como princípio a igualdade de direitos com equidade, a ética, a autonomia e a dignidade da existência de todo indivíduo; entre outros valores e concepções que promovam uma formação humana, no sentido de desenvolver um ser humano realmente sensível aos seus pares.

O fato é que, se não for na linha desses termos, dificilmente a educação conseguirá contribuir para evitar uma nova barbárie, um novo Auschwitz.

Avalição de Políticas Públicas
Ainda nesse sentido de se avaliar uma política pública, os pesquisadores dessa área, Marcus Faria Figueiredo e Argelina Maria Cheibub Figueiredo, entendem que a avaliação de uma política educacional tem como objetivo “acompanhar e aferir se os propósitos, estratégias e execução do programa estão sendo realizados segundo as definições previamente estabelecidas.”

Nilma Lino Gomes, pensando acerca das políticas educacionais voltadas às questões raciais, também defende que elas devam passar por uma grande avaliação. “Um importante estudo a ser realizado é a avaliação do impacto e do alcance de tais ações na implementação da educação das relações étnico-raciais na gestão da educação básica.”

Adorno e a Educação
Por fim, pensando novamente no que diz Adorno: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la.” fica-nos evidente a urgência de buscarmos entender quais foram as causas daquela tragédia, para que possamos evitá-la. Haja vista o fato de que ainda existem as condições que podem gerar este retrocesso da humanidade. “Apesar da não visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continuará se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminará em Auschwitz.”

Temos consciência que dificilmente medidas educacionais, por mais abrangentes que sejam, conseguirão eliminar de um todo, o reaparecimento de assassinos de gabinete. “Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; [...] contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento.” (ADORNO).

Referências:

ADORNO, Theodor W.  Educação e Emancipação. 2 ed. SP:  Paz e Terra, 1995.

Brasil melhora posição no ranking mundial do trabalho escravo. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1548633-brasil-melhora-posi...
Acesso em: 23/11/2014

BRASIL, MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. In: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012. 2014a.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12... Acesso em: 09/11/2014.

BRASIL, MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. In: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. 2014b.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12... Acesso em: 09/11/2014.

BRASIL, MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. In: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. 2014c.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12... Acesso em: 09/11/2014.

FIGUEIREDO, Marcus Faria; FIGUEIREDO, Argelina Maria Chibub. Avaliação política e avaliação de políticas: um quadro de referência teórica. Disponível em:
http://www.josenorberto.com.br/AC-2007-38.pdf
Acesso em: 23/11/2014

GOMES, Nilma Lino. As práticas pedagógicas com as relações étnico-raciais nas escolas públicas: desafios e perspectivas. In: ______. (Org.). Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03. Brasília: SECADI/MEC; UNESCO, 2011 (no prelo).

OLIVEIRA, Romualdo Portela de; ARAÚJO, Gilda Cardoso de. Qualidade de ensino: uma nova dimensão da luta pelo direito á educação. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n28/a02n28
Acesso em: 23/11/2014

ONU. Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, Durban – África do Sul.

PRESIDÊNCIA da República. Lei nº 11.645. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
Acesso em: 19/11/2014

SILVA, Paulo Vinicius Baptista; ARAUJO, Débora Cristina de. Educação em Direitos Humanos e Promoção da Igualdade Racial. Disponível em:
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/6241/5115
Acesso em: 23/11/2014

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