Outros carnavais - A vitória histórica dos Garis cariocas

Eles limpam o lixo das ruas e calçadas diariamente. Fazem o trabalho mais sujo e um dos menos valorizado na nossa sociedade. Apesar do uniforme laranja fluorescente, são invisíveis para boa parte das pessoas. Trabalhavam até 12 horas por dia, com salários de 800,00 reais, correndo a cidade apressados, sempre de forma gentil. Moram em favelas. São em sua maioria negros e tem um sindicato comandado há décadas pelo mesmo grupo político, que faz acordos salariais em negociatas fechadas com as empresas e com a prefeitura, que doa dinheiro para campanhas de políticos que taxam grevistas de vândalos e marginais.

Fazem parte de uma imensa nova classe trabalhadora precariada que nos últimos anos, apesar de todas as dificuldades, disputou um espaço inédito na sociedade brasileira. Os miseráveis, agora mais incluídos através de um governo popular, passaram a ter um horizonte e uma utopia para além do prato de comida. Nesta nova posição conheceram a internet. Compraram aparelhos celulares, notebooks e tablets genéricos. Reconheceram um espaço onde poderiam se relacionar e se organizar sem o patrulhamento imposto pelas organizações trabalhistas, pelo Estado, o Capital e a Mídia.

 

Foram sambando das redes para as ruas e criaram uma Greve vitoriosa em pleno Carnaval do Rio de Janeiro. Esta é a história dos garis cariocas.

 

Garis comemoram após 8 dias de greve. A pressão na Prefeitura em meio ao Carnaval conquistou aumento salarial de 37% para categoria.

 

A avenida

A cidade do Rio de Janeiro é o maior cartão postal brasileiro. Conhecida como Cidade Maravilhosa, é também um lugar onde as contradições e desigualdades mais saltam aos olhos. As favelas estão próximas de áreas nobres, das praias e das ruas, que com sua natureza democrática, misturam uma população diversa num caldo cotidiano multicultural e complexo.

Foliões festejam no Carnaval de Rua carioca

É também a cidade do samba e símbolo internacional da maior festa popular do país: o Carnaval. Além de tudo, foi a principal arena do ativismo brasileiro após as grandes manifestações de Junho de 2013.

 

Policiais da Força Nacional em ação para impedir as manifestações no Rio de Janeiro em Junho de 2013

No Rio não teve arrego. Professores, black blocs, midialivristas e setores organizados mantiveram o fervor das ruas mesmo quando o resto do Brasil esfriou, com mobilizações massivas, atos simbólicos e ações diretas. Por isso foi a cidade na qual os movimentos mais sofreram com a violência policial, a criminalização das forças conservadoras e das grandes corporações de Imprensa.

A morte recente do jornalista Santiago Ilídio Andrade no início do mês de fevereiro, atingido acidentalmente por um rojão disparado por manifestantes, foi o estopim para a condenação não apenas dos dois garotos que supostamente acenderam o explosivo, mas de toda e qualquer forma de manifestação popular. Caiu sobre as ruas o peso da morte, e com ele o fardo retórico e ideológico de que a violência poderia ameaçar a democracia.

De forma contraditória, mas com interesses claros por parte dos setores hegemônicos, este espaço transformou-se, tanto para a direita quanto para a esquerda tradicional, numa zona perigosa para devaneios ditatoriais. Para a proteção contra um mal maior, era necessário suportar outros males: uma lei anti-terrorismo chegou ao Congresso Nacional.

Os movimentos sociais passaram a ser ameaçados diretamente e um clima de incerteza e insegurança ronda boa parte das avaliações e leituras políticas no país, tranformando o contexto de um ano eleitoral com aproximação da Copa da Mundo ainda mais complexo. O papel fundamental que os novos movimentos e táticas políticas haviam desempenhado nesta história recente da democracia brasileira estavam agora ameaçados.

 

Era preciso abrir alas para o Carnaval.

 

Os adversários

No dia primeiro de março, um sábado, começava oficialmente o Carnaval brasileiro. Depois de uma articulação iniciada nas redes sociais, através de comunidades e perfis criados pelos garis, os trabalhadores da Comlurb convocam uma greve. A categoria exigia aumento de sálario-base para R$ 1.200,00, 40% de insalubridade e reajuste do ticket-alimentação de R$ 12,00 para R$ 20,00. O momento não poderia ser mais apropriado. No Carnaval, as ruas da cidade ficam completamente tomadas e a limpeza dos Garis é fundamental para a cosmética da festa. A cena já tradicional dos homens alaranjados cruzando a Marquês do Sapucaí atrás do desfile das escolas de samba faz parte do imaginário do Carnaval Brasileiro.

 

Mas os garis pararam. E por essa ninguém esperava.

 

Controlado há anos por um mesmo grupo, o Sindicato dos trabalhadores da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), historicamente costurou os acordos salariais em negociações nada transparentes. As relações políticas entre dirigentes sindicais e governo jogavam uma nuvem de desconfiança sobre os verdadeiros interesses defendidos pelo sindicato.

 

“A gente não quer ver a cidade suja. A gente é gari.
Mas com um salário desse a gente vai comer o que? Lixo?”
Marcelo Américo, 34 anos, Gari de Guadalupe.

Este sentimento foi um dos motivadores para os primeiros debates e provocações trazidas pelos garis nas grandes discussões públicas pelas ruas e praças do Rio de Janeiro.

A posição da prefeitura e do prefeito Eduardo Paes desde o primeiro momento foi de negar e desqualificar o movimento grevista com a conivência do Sindicato. Declarações públicas do prefeito chamavam os grevistas de minoria de vândalos e os acusavam de motim.

“Eu não chamaria de greve. É um motim de um grupo de
pessoas que inclusive coage os que querem trabalhar.
Greve é convocada pelo sindicato.” — Eduardo Paes

O desconforto com a não retirada do lixo num momento de grande evidência da cidade e de festa popular era utilizado de forma moralista e emocional. Como era possível parar num momento como esse? Como os milhares de turistas poderiam suportar uma cidade cheia de lixo às vesperas da Copa do Mundo? Como os garis podiam ser tão irreponsáveis?

Carnaval das moscas Aterro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro depois de 5 dias de paralização dos garis.

Numa inversão brutal de valores, a irresponsabilidade sob a gestão da cidade tenta ser transferida para os ombros já cansados da classe trabalhadora, que reivindica seus direitos, ao invés de ser assumida pelo poder público e seus representantes eleitos.

O Sindicato, fazendo jus ao distanciamento da categoria, fecha um acordo pífio de reajuste de 9% no sálario e declara de forma articifial o fim da greve, uma jogada ensaiada com a prefeitura e a grande mídia.

A justiça do trabalho considera a greve ilegitima. A empresa Comlurb inicia uma politica de intimidação clara enviando cartas, telegramas e até mesmo mensagens de texto (SMS) individuais anunciando uma demissão em massa dos garis grevistas.

 

 Compareça a sua gerência para tratar do seu desligamento.” Mais de 1000 funcionários são demitidos por mensagem SMS durante a greve como forma de intimidação.

A Polícia Militar e uma escolta armada privada são colocadas nas ruas para garantir a volta ao trabalho, e uma campanha difamatória contra a greve é orquestrada.

 

Escolta armada do grupo CTS acompanha coleta do Lixo no Centro do Rio de Janeiro. O valor pago a um agente privado de segurança para acompanhar uma coleta de 8h equivale ao valor pago mensalmente a um gari carioca

Vários boatos são criados com o apoio da mídia para tentar desqualificar o movimento e se somam a política ostentiva de intimidação e demissões.

 

 “Garis anunciam o fim da greve” é uma pequena chamada na coluna da esquerda, com destaque muito menor que a manchete principal — sobre Forças Armadas no Alemão — e inferior também à foto de um morador da Mangueira com vista para o Maracanã, a uma chamada sobre o Mujica e a chamadas para matérias sobre o autor de Game of Thrones e sobre o Aguinaldo Silva, respectivamente no Segundo Caderno e na Revista da TV. Na hierarquia de atenção, está em sexto lugar.

Enquanto isso, os grandes veículos de comunicação, principalmente as Organizações Globo, agem enquanto imprensa oficial da prefeitura, embarcando na onda difamatória de desconstrução do movimento. Extensas matérias no Jornal O Globo e no Jornal Nacional apelam para os argumentos judiciais, para o não reconhecimento da greve pelo sindicato e a pouca adesão de trabalhadores, tentando jogar a opinião pública contra aos garis.

 

Carro da Rede Globo é expulso de forma pacífica do Tribunal de Justiça do Trabalho. A emissora foi impedida de entrar para acompanhar as negociações por ação dos Garis.

O lixo acumula-se nas ruas e nas praias. O mal cheiro, característicos de algumas regiões pobres da cidade, chega ao centro e a zona sul.

Ao mesmo tempo, feridas muito mais profundas de nossa realidade política começam a ser expostas pelo movimento. Reforça-se o sentimento de abuso e desconexão da realidade do governo de Eduardo Paes, e consequentemente de boa parte da classe política brasileira, e evidencia-se que os aclamados investimentos na cidade maravilhosa não chegam nas bases, e que o modelo sindical compartilha claramente da mesma crise de representatividade de Governos, Partidos e imprensa.

 

Toneladas de lixo deixam de ser recolhidas das ruas do Rio de Janeiro durante o Carnaval. A greve dos Garis durou 8 dias.

As montanhas de lixo plástico corporativo espalhadas pelas esquinas do carnaval revelam bem mais que isso. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010 após mais de 20 anos de atrasos, ainda está longe de ser implementada: vivemos um modelo obsoleto de gestão do lixo, com altos custos ao meio ambiente e à saúde pública, financiado com o dinheiro dos nossos impostos. Quem continua lucrando são empresas como a Ambev, com sua estratégia de marca agressiva e sua onipresença na sujeira das ruas, isentas de responsabilidade na coleta e reciclagem das embalagens de seus produtos. Da mesma forma que na Copa do Mundo, os interesses econômicos que moldam a política pública ficam expostos, como o lixo espalhado pela cidade.

Uma ampla ofensiva tenta varrer os garis das ruas e acabar com a greve.
Em vão. São os garis que limpam a sujeira da Pólis.

Garis em marcha pelo Centro do Rio de Janeiro conquistam a opinião pública.

As novas alegorias

Desde o primeiro momento a paralisação dos garis mostrava-se um movimento diferente. Enfrentando ao mesmo tempo a prefeitura e o próprio sindicato, que a principio deveria ser o defensor dos interesses dos trabalhadores, tinham um grande desafio pela frente. Como esta gente até então “oprimida” poderia construir um processo político autônomo e lutar com inimigos tão poderosos?

 

A resposta veio de forma contundente. Uma faísca de consciência política fez incendiar a chama laranja que tomou conta da cidade, ganhou apoio nacional e internacional, e na maior humildade apresentou elementos revigorantes para o processo democrático brasileiro. Com uma ação política desafiadora das estruturas de mediação e construída através da participação direta, com uma estética de valorização dos passistas da periferia brasileira, os garis contra-atacaram e organizaram seu desfile político pelas avenidas do Rio de Janeiro.

As ofensivas eram respondidas com muita organização e com a instauração de um processo de participação real dos Garis. Ficava clara a organização popular e a consciência política. Atos criativos e assembléias diárias somado à convicção da necessidade de união da categoria deram uma grande consistência ao movimento. Dia após dia, a adesão da classe era mais evidente.

 

 Oliver Kornblitt / Mídia NINJA

Ao não cederem as demissões e ameaças e acelerarem o enfrentamento com agendamento de atos diários, os garis criaram um clima de confiança fundamental para que a luta por seus direitos fosse o elemento central de criação de um pacto de classe. Este ambiente de união da categoria e a capacidade de diálogo do movimento ganharam, na quarta feira de cinzas, uma imagem emblemática.

 

O gari Sorriso — no centro, em vermelho — adere à Greve e é carregado por seus companheiros.

Sorriso, o gari símbolo do Carnaval Carioca, conhecido nacionalmente pelas imagens transmitidas pela Rede Globo, a mesma que nesse momento condenava a greve em defesa do prefeito, adere ao movimento e vai as ruas participar do ato sob chuva. Sua imagem, carregado nos braços dos companheiros, toma as redes sociais e vira notícia, da mesma forma que seus passos na Marques do Sapucaí haviam contagiado milhões de brasileiros todos estes anos.

Um contra ataque simbólico, original e inesperado estava em curso. Sem vícios e táticas ideológicas clássicas, o movimento veio pra rua e expressou com alegria as suas reivindicações.

Aproveitando o momento festivo do carnaval, os manifestantes trocaram a marcha e as palavras de ordem pelo samba no pé e músicas bem humoradas e provocativas. Trouxeram um sentimento irreverente e descontraído para a sua luta.

 

Fantasias feitas de lixo e sobras do Carnaval foram utilizadas nos atos alegóricos dos Garis

A carnavalização da política, processo típico de uma intelectualizada esquerda festiva, tinha agora uma expressão verdadeiramente popular e muito autêntica, capaz de contagiar não apenas os garis, já mobilizados, mas também a opinião pública.

Ao mesmo tempo, a árdua jornada de trabalho que o Gari é submetido o prepara para o desgaste físico de uma maratona de manifestações, atos e passeatas realizadas diariamente, por 8 dias consecutivos. Aliando consciência política, resistência e festividade, demonstraram que não seria fácil contorná-los.

 

Garis documentam com seus celulares uma assembleia do movimento no Centro do Rio de Janeiro. Diversos grupos e páginas nas redes sociais adminitradas pelos Garis serviram como base de informação e mobilização dos trabalhadores.

A internet, fundamental no processo de articulação da greve, foi mais uma grande aliada e o principal ambiente de contra-informação. Transmissões ao vivo dos atos e uma ampla cobertura de fotos, vídeos e reportagens virtuais feita pelos Garis e por midia ativistas desmascaravam a campanha da velha mídia e apresentava claramente o jogo de interesses colocado nesta disputa. Mensagens e postagens de apoios de outros movimentos do Brasil e do Mundo ganharam a rede, e uma forte onda de solidariedade começou a ganhar corpo.

 

Sorriso samba em roda improvisada durante manifestação.

Charges com o prefeito e o lixo na cidade começaram a se viralizar. O apoio da população e a presença de veiculos independentes cobrindo a greve foram decisivos na construção de rotas de fuga para a disputa simbólica que estava sendo travada.

 

O lixo e o seu cheiro continuavam na rua, mais isso já não era mais um problema apenas dos garis.

 

O estandarte de Ouro

Dois grandes atos aconteceram nos dias 06 e 07 de Março, pós quarta-feira de cinzas. Nesse momento a tentativa da prefeitura de reduzir os grevistas a uma minoria revoltada se tornou uma falácia evidente.

Os 300 haviam se transformado em uma multidão. A adesão da classe era clara e a sua capacidade de resistência era apresentada com uma leveza carnavalesca desconcertante.

O sábado amanheceu chuvoso, depois de dias seguidos de passeatas sobre o sol forte do Rio de Janeiro. O derradeiro ato começou na Central do Brasil, e mesmo com a chuva insistente pela manhã, a presença dos garis foi expressiva. Ali, o reconhecimento do movimento político e seus novos atores já era um fato, tanto para o prefeito como para a sociedade.

A Comissão de Greve, até então ignorada pela Prefeitura, passava a fazer parte oficialmente da negociação entre sindicato, Comlurb e poder municipal. Numa última tentativa de manobra, o prefeito Eduardo Paes anuncia naquela manhã, pelo Jornal RJTV da Rede Globo, que na tarde daquele sábado uma reunião no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) decidiria os caminhos da greve. Pegos de surpresa com a noticia pela televisão, sem nenhum comunicado oficial, os trabalhadores grevistas reorganizaram rapidamente seu trajeto e seguiram em direção ao Tribunal para participar do encontro e decidir seus rumos.

Na sexta-feira, o ato que cruzou a Av. Rio Branco até a Cinelândia evidencia a força dos garis. Com apoio nas ruas e uma forte repercussão nas redes sociais transformavam a greve num dos principais assuntos de todo o país

 

A pressão popular dos últimos dias tinha arrefecido as bases que até então pareciam inflexíveis na negociação com a Prefeitura e o Sindicato. As águas de Março, com suas chuvas características, começariam a inundar a cidade com a quantidade de lixo acumulado nas ruas e bueiros. A imagem internacional do País da Copa, já há menos de 100 dias do Mundial, toma uma importância fundamental na pressão dos Garis.

Na primeira rodada de negociação a prefeitura insiste em uma proposta salarial que passa longe dos desejos da categoria. Reunidos em Assembléia os garis negam o novo aumento. O movimento tinha conseguido dar um golpe na arrogância política dos interlocutores da prefeitura e do sindicato.

 

Garis esperam pela negociação com a Prefeitura em frente ao TRT momentos antes do acordo histórico que elevou em 37% o salário da categoria.

E a prefeitura arregou.

 

Eduardo Paes foi obrigado a ceder a proposta feita pela comissão de greve. Com isso, o piso passou de R$ 804,00 para R$ 1100,00 mensais, um aumento de cerca de 37%, mais adicional de insalubridade de 40%. O tíquete-alimentação passou de R$ 12,00 para R$ 20,00 (66% de aumento), um plano odontológico e outros direitos também foram conquistados. Além disso, as 1100 demissões por justa causa declaradas anteriormente pela prefeitura como medida punitiva foram revogadas.

 

Se dependessem do sindicato os profissionais de limpeza urbana do Rio de Janeiro teriam apenas 9% de aumento. Se dependessem da prefeitura, nunca teriam parado de trabalhar. Se dependesse dos grandes veículos de comunicação o movimento seria criminalizado e difamado.

Mas os garis não dependiam de nenhum deles. Dependiam apenas da sua capacidade de se organizar. Dependiam da sua dignidade, de sua alegria e potência criativa. Foi assim que eles colocaram seu Bloco Laranja na avenida pela última vez no sábado, dia do desfile das Campeãs do Carnaval, e entraram definitivamente para a história de lutas e conquistas de direitos na imatura Democracia brasileira.

 

O verão carioca deste ano vai ser lembrado pela grande vitória da União
dos Garis, a escola política que apresentou o melhor enredo para o país
em 2014. Que venham outros carnavais…

Comunidades: