AS NOVAS DIRETRIZES PARA O ENSINO MÉDIO

Há temas propostos pelo Ministério e sobre os quais o Conselho delibera; na volta à análise do ministro, não há concordância e a proposta é devolvida, começando, então, um processo de negociação natural e importante, no sentido de fazer com que os dois mecanismos tenham um mínimo de sintonia em relação às grandes questões educacionais.

O ensino médio vive uma crise de identidade (e não só no Brasil). Há sérios problemas sobre a determinação de sua missão, de sua finalidade. Por isso, houve por bem o Conselho preparar um parecer de maior fôlego, como contribuição da Câmara de Educação Básica, da comunidade educacional. É uma tentativa de não só melhorar, no sentido de aprofundar a proposta do Ministério, como também ampliá-la. Disso resultou o parecer que fixa as diretrizes para a organização curricular do ensino médio. É um parecer longo, com quase 70 páginas. É muito importante que, com a calma e a serenidade que essas coisas merecem, nas escolas e nas comunidades, as pessoas se dediquem à sua leitura e análise. Uma vez aprovado este parecer, haverá uma resolução que, de forma sintética, espelhe a análise feita e trace efetivamente a norma de organização curricular, conforme as Diretrizes curriculares nacionais,

Do ponto de vista legal, cabe ainda esclarecer como se processa a tramitação das normas, que são obrigatórias, tanto as que emanam dos Conselhos Estaduais, como as definidas pelo Conselho Nacional da Educação. Concomitantemente com a elaboração de diretrizes tanto para o ensino médio como, antes, para o ensino fundamental, o Ministério da Educação, no desempenho de suas funções de assistência técnica aos Estados e Municípios, preparou, também, o que veio a ser conhecido como parâmetros curriculares, um trabalho de fôlego. São a proposta curricular do Ministério, e, não sendo obrigatórios, com certeza serão muito importantes e muito utilizados, sobretudo nos Estados e Municípios que não criaram, ainda, capacidade própria para formular sua propostas curriculares.
Por isso, o trabalho a nós atribuído de traçar diretrizes estava exatamente na tensão que normalmente ocorre entre o Governo federal e as autonomias estaduais e municipais (reconhecidas pela nossa Constituição) na gestão pedagógica e administrativa dos seus sistemas de ensino, e depois, com a LDB, na autonomia dos seus estabelecimentos. Acreditamos que conseguimos resolver essa tensão da maneira mais produtiva possível, sem deixar de cumprir o que nos pode a lei – uma base nacional comum. Esta base precisa ser deliberada pelo Estado nacional, por ser o ponto de união de toda a enorme diversidade continental do Brasil. Deve, por isso e, ao mesmo tempo, abrir ao máximo as possibilidade de conjuntos curriculares mais diversificados possíveis.
Esclarecidos as mecanismo de tramitação e o significado das diretrizes, podemos analisar o trabalho do Conselho Nacional da Educação que, ao determinar as diretrizes, busca fixar um ponto comum nessa diversidade. Não há nenhuma pretensão de que o seu parecer e suas propostas sejam eternos. Não se consideram escritas em pedra as doutrinas educacionais, passíveis de transformação, na medida que são incorporadas e praticadas pela sociedade e, por isso, devem ser ajustadas.
A Lei de Diretrizes e Bases. Na realidade, as grandes direções para os currículos nacionais já estavam traçadas na lei. E nós somos, em parte, guardiães da LDB e é muito importante que tudo que fizéssemos estivesse estritamente dentro do espírito e, na maior parte das vezes, dentro da própria letra dessa lei. Nosso ponto de partida foi o primeiro artigo da lei, que diz que a educação escolar deverá estar vinculada ao trabalho e à prática social. Quero assinalar a importância de ser esta a primeira vez que a lei não diz que a educação profissional vincula-se ao trabalho: diz que a educação escolar será vinculada ao trabalho e à prática social. Isto significa, em princípio, educação escolar da creche ao último ano de doutorado, em todas as matérias. Ela não especifica a modalidade em que a vinculação para o trabalho deve ocorrer; une o trabalho à prática social como as duas dimensões que devem estar presentes no processo educativo, em todas as suas manifestações escolares.
O segundo princípio importante é o fato de ser a lei muito parcimoniosa ao
mencionar disciplinas, quando se refere tanto à finalidade quanto aos currículos ou às diretrizes curriculares. Só são citadas disciplinas em casos muito específicos e, assim mesmo, com o nome de componentes curriculares ou de “conhecimento sobre” e não necessariamente de uma disciplina escolar tal como a conhecemos. Essa lei, antes de mais nada, enfatiza competências cognitivas, começando pelas finalidades gerais da educação básica, na qual a capacidade de aprendizagem tem um grande destaque. Então, não se trata de ensinar um conteúdo específico, mas sobretudo de desenvolver a capacidade de aprendizagem de diferentes conteúdos, por todo o ensino fundamental.
Nos artigos 35 e 36, que tratam especificamente do ensino médio, a lei abre portas para um currículo voltado para competências e não para conteúdos. Este currículo ou doutrina curricular tem como referência não mais a disciplina escolar clássica, mas sim as capacidades que cada uma das disciplinas pode criar nos alunos.
Alguns pontos desses artigos devem ser destacados. Em primeiro lugar, a autonomia intelectual, outra maneira de se falar em capacidade de aprendizagem. Para haver autonomia intelectual é muito importante que a pessoa saiba como aprender. Em segundo lugar, o conhecimento dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos. É necessário notar que esse trecho é da lei sobre educação básica, não de educação profissional.
Em terceiro lugar, a relação entre a teoria e a prática em cada disciplina do currículo, não só nas disciplinas chamadas práticas, mas em todas elas: português, artes plásticas, química ou matemática. É a relação entre a teoria e a prática em cada disciplina do currículo. Em quarto lugar, o enorme destaque não para os conteúdos, mas para os significados. A lei é bastante explícita: “Ao sair do ensino médio, o aluno deverá ter compreensões do significado das ciências, das artes e das letras”. Ela não diz que ele deverá saber português. Sobre a língua portuguesa, especificamente, o destaque se dá na língua como exercício da cidadania, na língua como instrumento de comunicação e na língua como capaz de constituir significados, portanto, um instrumento de organização cognitiva da realidade.
É muito interessante esse aspecto e chega a ser intrigante imaginar o nosso Congresso Nacional, com sua heterogeneidade, com o que ele tem de bom e o que ele tem de não tão bom, ter aprovado uma lei muito contemporânea até mesmo na linguagem. Porque, se analisarmos os documentos a respeito das reformas mais recentes da educação secundária (como é conhecido em todo o mundo o ensino médio), ocorridas na Europa, especialmente na Espanha e na Inglaterra, a questão da linguagem e das linguagens constituidoras de significados está muito mais presente do que a questão dos conteúdos, por uma série de razões. Eu não estava no Brasil quando se elaborou a LDB, e não acompanhei de perto esse processo, mas de longe eu chegava a dizer: “Que coisa estranha! Que coisa moderna em um país que pra mim tem séculos que se sobrepõem, como se os séculos 17, 18 e 19 tivessem deixado um rescaldo aqui, e se fosse acumulando uma grande contemporaneidade com muita coisa arcaica”. Considero que, pelo menos no âmbito legal, temos hoje uma situação em grande sintonia com algumas exigências educacionais de grande contemporaneidade. Para encerrar a análise da LDB, há um último aspecto importante a destacar: ela coloca o ensino médio como etapa final da educação básica, base que a ninguém em princípio deve ser negada, conforme determinam a Constituição de 1988 e a Emenda 14, aprovada após a LDB, no sentido da universalização do ensino médio.
Foi sob esse cenário legal que o Conselho trabalhou. Mas há também outras coisas tão ou mais importantes que a questão legal que tiveram de ser levadas em consideração. Uma delas diz respeito ao próprio desenvolvimento brasileiro. Ainda hoje, eu estava folheando os dados mais recentes das estatísticas educacionais que temos. São bem claras algumas tendências que traçam alguns panoramas interessantes e desafiadores para o futuro... Em primeiro lugar, aumenta, de maneira contínua, embora lenta (mas é uma tendência de alguns anos), a taxa de conclusão do ensino fundamental. E, ao mesmo tempo se reduz, de maneira lenta, mas também contínua, a idade média dos concluintes. Este é um indicador muito seguro de que o esforço para resolver alguns problemas básicos de qualidade no ensino fundamental (como repetência, abandona e evasão) começou a produzir efeitos. Por exemplo, em dez anos cresceu em cerca de 30% o número dos jovens que, em menos tempo, conseguem cursar e completar as oito séries do ensino fundamental. Os jovens equivalentes a estes, dez anos atrás, tinham expectativa de permanecer 11 anos no sistema, em vez dos 8 regulares. Atualmente estamos em 9,7 anos. Quanto mais cedo o aluno terminar a 8 série, mais disposição ele terá de buscar o ensino médio. E é por isso que, em 12 anos, estamos elevando a nossa matrícula no ensino médio de cerca de 11% a 12% ao ano. De 1997 para 1998, isso deve ter significado a incorporação de quase 800 mil alunos jovens, ou jovens adultos, na primeira série do ensino médio.
Isto equivale dizer que o ensino médio está dando os primeiros passos para deixar de ser excludente e começar a incluir um outro tipo de população, porque até agora a taxa líquida de matrícula no ensino médio é de 25%, até um pouco menos. Ou seja, apenas uma quarta parte dos jovens de 15 a 17 anos consegue chegar à escola média. Um outro tanto está na escola, mas ainda retido no ensino fundamental. Portanto, a taxa bruta é de pouco mais de 50%, enquanto no ensino fundamental a taxa de escolaridade é superior a 95% da faixa etária. Se quiséssemos escolarizar toda a população até 17 ou 18 anos, teríamos de incluir metade da faixa etária. Se o ensino fundamental definitivamente deixar de ser um segmento de exclusão no País, a fratura social deslocou-se para o nível médio – com um movimento, porém, que vem de ensino fundamental.
Estamos, portanto, exatamente no ponto de conversão. É este, e nenhum outro, o momento de se pensar qual é a escola média que se pode organizar para esta população que Quem é este jovem que chega à escola média e estará a ela chegando cada vez mais? Este fenômeno é acentuado pela onda de adolescentes brasileiros. O país teve um pequeno baby boom 15 anos atrás. Então, o Brasil, acostumado a incorporar um número x de pessoas por ano na faixa adolescente, passou a incorporar esse x mais 25%. Este fenômeno demográfico deve perdurar até 2007 e é bom lembrar que o movimento de acréscimo no ensino médio ocorre em momento de globalização econômica, de aumento da competitividade, de crise de emprego, de crise de empregabilidade que incide cruelmente sobre a população jovem.