José Saramago: Rapsodo do mundo contemporâneo, um pensamento anti-bíblico
As narrativas, da maneira que se organizam e de como atravessam diversos tempos e temporalidades, talvez não permitam que se faça algo como uma definição pragmática, embora no decorrer da nossa história ocidental muito foi dito, escrito e pensado sobre o assunto. Aristóteles descreve o gênero narrativo a partir da oposição entre a lírica dos ditirambos e o drama das tragédias e comédias.
A épica, ou gênero épico, das epopeias de Homero, é o gênero extensivo no qual se contam as histórias de heróis e deuses e suas longas trajetórias num longo espaço de tempo, durante guerras e grandes feitos. É importante dizer que há um caráter intrínseco de oralidade nessas histórias contadas por Homero, ou seja, uma espécie de construção por repetição e diferença entre quem conta e quem ouve. É o primeiro elemento que gostaria de destacar: o fato de que havia concurso dos que contavam essas narrativas, conhecidos como rapsodos, que a partir da mnemônica, método de “rememoração” ou de memória, decoravam por completo as obras homéricas e as narravam em público e de acordo com sua capacidade e elocução, seja nas ênfases ou nos domínios da fala, eram premiados e tidos como “especialistas em Homero”.
Com isso, há na narrativa um movimento de oralidade duplo, ou seja, um primeiro das histórias que são contadas e se contam, e um segundo no qual, depois da obra escrita, ela é de novo contada. Seria possível, então, dizer que, como narrativas, há um destaque numa forma de contar, melhor dizendo, pode-se dizer que paralelo ao fato contado, à narração, às tramas – seu desenvolvimento, sua crise e sua solução – uma forte característica da escrita, de linguagem, de construção desses elementos. Há toda uma forma de falar mais que “conteudística”, que é ao mesmo tempo individual e coletiva: individual porque pessoal do sujeito que faz a elocução, e coletiva porque é compartilhada. É exatamente essa forma, ou seja, a discussão entre o fato e o contar do fato que é meu foco nesse texto. Para isso, vou usar como referência alguns pensamentos a respeito da obra de José Saramago.
Saramago, escritor português contemporâneo, é conhecido pela ironia (segundo ele, aprendida com Eça de Queiroz), pelo humor mordaz, pelo ateísmo implacável, pela tendência esquerdista e pela grande capacidade de contar histórias dialogando com a tradição e com a cultura ocidental. Há dentre suas obras o romance A Caverna na qual ele, para descrever o impacto das economias globais nos pequenos mercados, se usa do mito da caverna de Platão e de seus simulacros. Outra obra que permite esse diálogo é O Ano da morte de Ricardo Reis, na qual ele personifica um dos heterônimos de Fernando Pessoa e o faz circular por Lisboa morando em hotéis e visitando tanto monumentos importantes como fatos importantes da época, assim como receber visitas do já finado espírito de Pessoa que aparece para dialogar com Reis sobre fatos da vida. Nessa mesma via há o romance A viagem do elefante, em que o animal é dado como presente para um rei, e sua viagem passando pela Europa é contada e, mesmo que não haja fatos reais, a não ser alguns nomes reais que aparecem em trechos do livro, é clara a intenção narrativa de reconstrução parabólica de um momento.
Há também o polêmico e talvez mais importante obra do final do século XX que é O Evangelho segundo Jesus Cristo, no qual o autor reconta a história do novo testamento do princípio ao fim, dando a Jesus o papel de homem, como no trecho:
“O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”
O livro, proibido de concorrer a prêmios em Portugal, parece ser o exemplo claro do efeito das narrativas numa população ou num estado. Me parece que são essas narrativas que constroem uma unidade de nação, de população, são elas através da língua e da linguagem corrente que formam um povo. O próprio Fernando Pessoa havia dito que “minha pátria é minha língua portuguesa”, então uma obra que venha ferir a tradição, principalmente a Bíblia cristã, se torna automaticamente uma ameaça a essa unidade.
Outro exemplo se dá em Caim, no qual Saramago, o “escritor” da narrativa bíblica, resolve começar pelo Éden, por Adão e Eva e pela linguagem. Começar a narrativa pela linguagem, assim como na Bíblia começa-se pelo gênesis, pela luz. Não é uma criação aleatória, o próprio Saramago sabia que ao escrever sobre a Bíblia estava reescrevendo a própria linguagem dela, mergulhando por dentro dos fatos religiosos e tirando deles o que quer que fosse. Um exemplo disso:
Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra.
Ou seja, a linguagem humana, para Saramago, foi a maneira de corrigir o erro de ter feito os homens tal qual a si, só que sem o dom da fala, da narração…
No entanto, Auerbach já havia dito no ensaio “A Cicatriz de Ulisses” que a Bíblia, por ser baseada num dogma, num modelo de regras a seguir, com uma grande força autoritária que seria seguida através da crença e da fé, é dotada de lacunas, de espaços em branco, sem descrições pormenorizadas ou caracterizações temporais mais do que as básicas necessárias, e justamente por isso permite que se faça interpretações, discursos variados e aferições sobre qualquer dos temas tratados nela.
É nesse sentido que coloco Caim, de Saramago, como uma obra que entra em contraponto com a Bíblia e se aproxima do mundo grego. Ao tomar o poder de narrador dessa história, Saramago se dá ao direito de interpretar o livro sagrado, mas não apenas no sentido de recontar essa história, mas recontar encontrando as estruturas de poder, mostrando as contradições ali presentes de acordo com sua visão ateísta e assim, preenche as lacunas dando uma visão, uma voz narrativa aos fatos, chegando ao ponto de não permitir em seu livro outra leitura àquela que foi feita, assim como Auerbach fala da narrativa grega, onde tudo está explicado, às claras, que lhe dá prazer pelo contar, mas não permite que se faça reparações.
Por isso, digo que Saramago se aproxima, talvez, daquele papel do rapsodo, o contador de história, pois ele se torna, ao recontar um fato, o homem que toma a frente, sustenta em sua voz a palavra de outro e a conta de sua maneira, com suas inflexões e sua voz, tornando a narrativa viva, e fazendo com que ela tome ou retome sua oralidade primeira, dando vivacidade e trazendo a ela um gás novo, de discussão, de riqueza e pluralidade que gera polêmica, mas ao mesmo tempo nos reencena um mundo que nos parece antigo e ultrapassado.
Revisado por Amanda Prates.
Sobre o autor:
Luiz Antonio Ribeiro 28 anos, dramaturgo, letrista, crítico, poeta e flamenguista. É bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO, onde atualmente é graduando do curso de Letras/Literaturas. É adepto da leitura, pesquisa, cinema, cerveja e ócio criativo. Desde 2011 é membro do grupo Teatro Voador Não Identificado. Facebook: http://www.facebook.com/ziul.ribeiro Twitter: http://www.twitter.com/ziul
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