Cavalheiro ou canalha?

Pagar a conta, abrir a porta, oferecer o braço... Para jovens feministas, o cavalheirismo não passa de um ardil machista. 

Por Cynara Menezes

Simpático à causa feminista, aparente modelo de pai e marido, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, viveu seu dia de “brucutu” há algumas semanas. Seu pecado: elogiar uma mulher. Na posse da nova procuradora-geral, Kamala Harris, Obama não resistiu e soltou o galanteio: “É, de longe, a mais bela procuradora-geral”.

Harris sorriu, lisonjeada, mas o presidente virou alvo das feministas, que o acusaram de prejudicar a luta pela igualdade entre os  gêneros no trabalho quando destacou um atributo físico da procuradora. Pasmem, senhores, mas o cavalheirismo deixou de ser unanimidade.

Mais de 50 anos após o início do movimento de liberação feminina e do advento da pílula anticoncepcional, parte das feministas agora luta pelo direito de não serem tão bem tratadas assim. Ou, ao menos, não de uma forma particularmente dirigida ao gênero feminino, o que ocultaria, afirmam, uma condição de superioridade de quem a pratica, o homem. Rejeitam o cavalheirismo como uma forma disfarçada, “benevolente”, de machismo, mas sem abrir mão da gentileza no trato. Qual a diferença? O homem gentil é gentil com homens e mulheres, e o cavalheiro, apenas com as mulheres. Obama seria capaz de fazer a mesura se fosse um procurador bonitão? Eis a questão.

O termo machismo ou sexismo benevolente foi utilizado pela primeira vez em 1996 pela dupla de psicólogos norte-americanos Peter Glick e Susan Fiske, mas voltou à baila nos últimos anos a partir de novos estudos dedicados inteiramente ao tema em vários países. Em dois dos trabalhos mais conhecidos, a pesquisadora alemã Julia Becker, da Universidade de Marburg, e sua colega Janet Swim, da Universidade da Pensilvânia, tentam demonstrar como ações masculinas à primeira vista inofensivas, como abrir portas, carregar sacolas ou pagar a conta no restaurante, podem esconder a noção subliminar da mulher fraca e incapaz.

Obviamente, a reação mais feroz partiu dos homens. Artigos com títulos como “As feministas querem matar o cavalheirismo” pipocaram na internet em diversos idiomas. Até mulheres fizeram o contraponto e apontaram certo exagero na teoria. Neste caso, tratou-se de uma crítica conectada ao conservadorismo. O Fórum Independente de Mulheres dos EUA, um grupo antifeminista, acusou o atual feminismo de ser “misógino” e de querer ridicularizar as mulheres. No Arizona, um grupo conservador de universitárias chegou a organizar um campeonato de cavalheirismo entre os estudantes, com premiação e tudo. Peter Glick, o autor do estudo original, veio a público para esclarecer: o cavalheirismo não seria sempre inapropriado, mas é necessário saber “não cruzar a linha”.

Qual é exatamente a linha a não ser cruzada? Por que o outrora simpático cavalheirismo seria, no fundo, prejudicial às mulheres? No Brasil, uma das vozes de destaque na oposição ferrenha às mesuras masculinas é a da psicanalista Regina Navarro Lins, autora de artigos ácidos contra um suposto excesso de rapapés dos homens no momento de fazer a corte. No recente “O cavalheirismo é nocivo às mulheres”, Navarro Lins questiona: “Que tipo de homem deseja proteger uma mulher? Certamente, não seria um que a vê como uma igual, que a encara como um par. Mas aquele que se sente superior a ela”.

Por proteger, entenda-se oferecer o braço ao cruzar a rua, por exemplo, ou puxar a cadeira para a pretendente em um restaurante.  “Jamais vai passar pela cabeça de um homem que não é machista a ideia de se levantar para puxar a cadeira para uma mulher. Isso não existe”, afirma a psicanalista. “Quem se levanta está ainda submetido a uma mentalidade que considera a mulher incapaz. Mesmo de forma inconsciente, está.”

Pode até soar absurdo para os homens, mas o discurso da psicanalista ecoa entre jovens mulheres interessadas em temas feministas. “O cavalheirismo é uma forma de submissão mais eficaz encontrada pelo patriarcado machista. Funciona melhor que o machismo literal. O sexismo benevolente é muito mais sutil e cotidiano”, dispara Bianca Andrade, estudante de Psicologia de 22 anos, moradora de Natal, Rio Grande do Norte. “Para que abrir uma porta que eu sou capaz de abrir sozinha? É um romantismo falso, relacionado à ideia de que a mulher necessita de um homem para sobreviver.”

“De que adianta ajudar com as compras, se não ajuda a lavar a louça? Abrir a porta, mas não fazer a faxina?”, provoca a socióloga Tica Moreno, 29 anos, integrante da Marcha Mundial de Mulheres. Para o movimento, o cavalheiro seria a outra face do agressor, assim como seria uma forma disfarçada de machismo. “Ser cavalheiro não significa que o cara será gente boa, mesmo porque o cavalheirismo acontece no espaço público e a violência, no privado.”

A psicóloga alemã Julia Becker reforça a controversa ideia de que o cavalheiro, como o médico e o monstro, pode esconder com amabilidades um alter ego tenebroso. “Homens que endossam o sexismo hostil também podem endossar o benevolente. Se uma mulher decide confrontar o machismo, ela provavelmente está sujeita a experimentar o hostil”, defende. Becker enumera outros insuspeitos efeitos adversos do cavalheirismo: prejudica a performance cognitiva feminina, faz a mulher esperar pelo príncipe encantado em vez de perseguir os próprios objetivos, aumenta a crença de que a sociedade é justa, desmotiva as mulheres a se engajar em ações pela igualdade entre gêneros.

“O principal problema do machismo benevolente é que as mulheres são tratadas como criaturas maravilhosas, mas também como incompetentes”, explica a psicóloga. Ela refuta com veemência as acusações de que o feminismo pretenda matar o cavalheirismo. “Esses argumentos também são machistas. O romance sem cavalheirismo, que subordina as mulheres ao homem, pode levar a um relacionamento muito mais satisfatório.” Pergunto se seu marido não reclama de ela rejeitar o tratamento cavalheiro, e ela responde: “Atualmente, meu marido fica em casa, cuidando das crianças, enquanto eu trabalho”.

O sexismo benevolente no ambiente de trabalho é particularmente incômodo, apontam as feministas. Aquelas ofertas, “beirando o assédio”, que os homens fazem para ajudar as colegas do sexo feminino, sobretudo as mais atraentes, em tarefas prosaicas, a partir de estereótipos como “elas não sabem lidar com computadores”. Se as mulheres recusam, argumentam, são consideradas “frias”, por um lado, embora competentes por outro. Se aceitam a oferta, são rotuladas de “afáveis”, porém, ineptas. O mesmo não acontece quando um homem rejeita o auxílio.

No cotidiano das relações amorosas, o ato mais execrado pelas feministas é quando os parceiros sacam a carteira para pagar a conta do restaurante após um jantar romântico, em vez de rachar a despesa. Oferecer-se para pagar a conta embutiria certa sensação de superioridade por parte do homem. E a atitude aparentemente inocente exporia o fato incômodo e persistente de que as mulheres ganham menos, inclusive quando ocupam as mesmas posições no trabalho.

“Já tive brigas enormes na hora que vem a conta. Para começar, o garçom entrega direto para o homem”, diz Carol Peters, 21 anos, estudante de Letras da USP e integrante do setorial de mulheres do PSOL. “Os homens não entendem por que é importante para a mulher pagar a conta. Se um dia eles pagam, tudo bem, mas quando a gente quer devolver a gentileza, não aceitam. Parece mexer com a virilidade deles. Aliás, essa noção de que o homem tem de ser viril não é positiva. Deve ser desconstruída também.”

Nos anos 1990, Camille Paglia comprou briga com o movimento feminista ao defender as diferenças entre os gêneros. “O sexo entre os dois sexos é bom porque as mulheres e os homens são diferentes. Nós queremos apenas direitos iguais na sociedade, não queremos que os homens sejam como as mulheres”, repetia. Hoje em dia, o discurso dominante enxerga, porém, a diluição das diferenças até um ponto que, como acredita Navarro Lins, em 30 ou 40 anos toda a humanidade será bissexual. “Masculino e feminino não existem, isso está acabando”, defende. “Essa divisão foi forjada e aprisionou ambos os sexos.”

Os homens, é claro, não concordam. “A resposta a essa postura das mulheres é esse homem mais feminino, mais sensível, mais dependente. Não sei se está agradando por aí”, desdenha o jornalista e músico Marvio dos Anjos, 34 anos, que escreve sobre relacionamentos em um blog. “Algumas mulheres acreditam tanto no feminismo que passam a psicanalisar todo e qualquer ato que o homem faça a seu respeito. E aí, tudo que se pretende carinho passa por agressão e dominação. É como dormir com o inimigo”, critica. “Não se pode hiper-racionalizar as relações, isso é negar a própria humanidade.”

Cavalheiro assumido, “nota 9” na escala segundo ele próprio, do tipo que puxa a cadeira e abre a porta, o escritor Xico Sá, autor de Modos de Macho & Modinhas de Fêmea (Record), até aceita a existência de um verniz de machismo disfarçado. “Mas ver como negativos os bons modos é pura paranoia delirante. Hoje em dia, vejo os homens, principalmente os mais jovens, tratando as meninas como se fossem ‘manos’. Não tenho o direito de tratar bem uma mulher?”

Para Sá, as meninas têm rejeitado o cavalheirismo e os homens estão meio perdidos diante dessas reações. Já criaram confusão com ele, por exemplo, ao se antecipar para pagar a conta, mas diz que não vai mudar o estilo por causa disso. “Um cavalheiro convicto não abandona seus gestos, sob pena de sentir-se um tosco, grosseiro.” Pergunto se é gentil com os homens. “Também. O que muda é que no código do nosso faroeste masculino às vezes xingar o amigo com um palavrão, por exemplo, significa um ato de ternura.” E o que você faria se uma mulher dissesse “vai abrir a porta para sua mãe”? “Diria: ‘Perdão pelos bons modos, minha querida, passar bem’.”

“Não é preciso abrir porta para cortejar uma mulher. Não é isso que elas querem, não é o que estão buscando”, defende o escritor Alex Castro, do blog Papo de Homem, autor de vários textos onde condena o cavalheirismo e uma das raras vozes masculinas em favor da tese do “sexismo benevolente”. Segundo Alex, não dá para generalizar o que “as mulheres” querem. “É preciso descobrir o que a mulher que você deseja quer, isso sim”, defende, e diz que é ótimo que o homem esteja confuso. “Ao recusar o cavalheirismo, a mulher está negando uma narrativa milenar, de um grupo dominante. Para os homens, estar em dúvida é um excelente começo. É melhor do que ter certezas.”

Há um aspecto em que homens e mulheres parecem ignorar nesse debate e que vai além de feminismo e machismo, de gentilezas e cavalheirismos. E se abrir portas, puxar a cadeira e pagar a conta para uma “dama” tiver se tornado cafona?